quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Prenderam o bombeiro



Há 20 anos o Projeto Saúde & Alegria, em Santarém, leva saúde e apoio a comunidades no oeste do Pará.  Fundada pelo médico Eugenio Scanavino e seu irmão Caetano, a ONG faz um trabalho de base que atende centenas de famílias ribeirinhas e extrativistas e inclui um barco-hospital — que foi pioneiro neste tipo de atendimento —, projetos de produção agroextrativista, estímulo e capacitação para o cooperativismo, educação e, nos últimos dez anos, a prevenção e controle das queimadas.

Receberam inúmeros prêmios, como o das 100 melhores ONGs do Brasil, e são referência no mundo todo. São também muito combativos. Lutam intensamente pelo direito das populações tradicionais e a proteção da floresta. Este ano, com o aumento do desmatamento e do fogo na região, o Saúde & Alegria, juntamente com várias organizações da sociedade civil, denunciou os grileiros e os loteamentos que ameaçavam as áreas de proteção ambiental do balneário de Alter do Chão. Apoiou a formação de brigadistas com apoio do Corpo de Bombeiros. Um grupo de voluntários criou a Brigada de Alter do Chão, incluindo um técnico que trabalha no Saúde & Alegria.

Os integrantes da Brigada fizeram denúncias, levaram informações para os investigadores — inclusive imagens das queimadas — e correram atrás de recursos para viabilizar o combate aos incêndios, enquanto o governo cortava orçamento dos programas de controle do fogo.

Na manhã desta terça-feira, a Polícia Civil do Pará prendeu temporariamente quatro voluntários da Brigada de Alter do Chão, acusando-os de provocar os incêndios para obter vantagem financeira, e de quebra vasculharam a sede do projeto e apreenderam todos os seus equipamentos e documentos.

O oeste do Pará — com uma área duas vezes maior que o Estado de São Paulo — é a região campeã de desmatamento no estado que mais desmata no país. Como bem mostrou uma reportagem do “Fantástico” no auge do fogo este ano, existiam apenas meia dúzia de funcionários do Ibama e ICMBio para cuidar da região, sem recursos para fiscalizar o desmatamento e as queimadas. Neste contexto, as brigadas de voluntários se tornam muitas vezes o único recurso disponível para fazer frente aos incêndios.

É estarrecedor que, em vez de correr atrás dos criminosos que anunciaram em alto e bom som pelo WhatsApp o fogo proposital ao longo da BR-163, a polícia prenda os que atuam como bombeiros e amarre as mãos de uma organização líder na promoção da sustentabilidade na Amazônia. São tempos realmente sombrios.

Publicado em O Glogo em 27.11.2019

quinta-feira, 7 de novembro de 2019

Fogo, lama, óleo e esperança



O Brasil passa em 2019 por uma crise socioambiental inimaginável. Começamos o ano com a tragédia do rompimento da barragem de Brumadinho, com mais de 200 mortos, a aceleração vertiginosa do desmatamento, grilagem, violência e garimpo ilegal na Amazônia, o crescimento exponencial do fogo no Cerrado e Pantanal e o estarrecedor derramamento de óleo que atinge a costa do Nordeste.

Não da para colocar estes eventos todos na conta do governo federal. Mas o ambiente criado pelo atual governo não ajuda em nada. Nos últimos dez meses acontece um desmonte das políticas de conservação dos recursos naturais e proteção das comunidades tradicionais.

O orçamento dos programas ambientais foi ceifado, o PPCDAm, programa de combate ao desmatamento de maior sucesso e efetividade no mundo, foi descontinuado. O Fundo Amazônia foi enterrado vivo, e mais de US$ 500 milhões devem retornar para os doadores. O programa de conversão de multas ambientais em recuperação florestal com um investimento bilionário na recuperação do Rio São Francisco foi cancelado após todo o processo de chamada publica de projetos ter sido finalizado; e foram cortados drasticamente os espaços de participação social, os comitê de formulação, monitoramento e controle de políticas publicas. Para completar, agora querem taxar a geração distribuída de energia solar e criar incentivos para térmicas a carvão.

E não para por ai. O governo federal propôs revisar os limites de todas unidades de conservação para poder excluir áreas ocupadas ilegalmente e entregá-las a uma falsa regularização fundiária, baseada em reconhecimento de posse de grileiros de terras públicas. O presidente afronta a Constituição, se recusando a dar prosseguimento à demarcação das terras indígenas, que é um direito destas populações e um dever do Estado.

Esperar uma ação afirmativa pelo meio ambiente e as populações tradicionais vinda do governo federal deixou de ser uma opção realista. O caminho agora é construir iniciativas que deem visibilidade e concretude para um caminho alternativo para superarmos esta fase desoladora.

Em outubro, representantes de várias etnias indígenas, comunidades quilombolas, extrativistas, ribeirinhos, ONGs de apoio e empresas privadas se reuniram em Alter do Chão para discutir os próximos passos da iniciativa Origens Brasil, que procura promover os produtos gerados pelas comunidades que produzem protegendo a floresta. Mais de 30 etnias e 40 cooperativas e grupos comunitários em quatro territórios na Amazônia (Xingu, Calha Norte, Solimões e Rio Negro) que constroem relações transparentes e duradouras com empresas para fazer prosperar não este Brasil da tragédia, mas o Brasil que produz conservando os recursos naturais e protegendo suas populações guardiãs da floresta.


Em tempos sombrios, é esse o tipo de iniciativa que mantém a chama da esperança acesa.

Publicado em O Globo em 06.11.2019

quarta-feira, 25 de setembro de 2019

O cerco ambiental das crianças



Minha filha nasceu em 2009. Foi um ano de esperança. O desmatamento estava despencando no Brasil, e na preparação para a Cúpula do Clima em Copenhague, países e empresas assumiam compromissos para acabar com desmatamento e reflorestar o mundo.

Embora não tenhamos conseguido o acordo em Copenhague, continuamos nossa jornada construindo impulso para o Acordo de Paris em 2015. Minha filha tinha 6 anos e me perguntou sobre o meu trabalho. Expliquei solene que estávamos construindo um acordo para, juntos, todos os países e povos, deixar um planeta melhor para a geração dela.

Clara completou 10 anos e me pergunta: “Por que você viaja tanto, trabalha tanto e, em vez de cair, o desmatamento está subindo? O que vocês, adultos, estão fazendo parece não estar funcionando. O que vão fazer para consertar?”

Na última década, mais de 200 grupos econômicos concordaram em trabalhar para reduzir pela metade o desmatamento tropical até 2020 e encerrá-lo em 2030. Centenas de empresas se comprometem a limpar sua cadeia de suprimentos do desmatamento até 2020. Países e empresas se comprometeram a colocar em restauração 150 milhões de hectares de florestas até 2020 e 350 milhões de hectares até 2030.

Dez anos depois, não temos muito a comemorar. O progresso nos objetivos de proteção e restauração das florestas são mínimos e, em alguns casos, inexistentes. Depois de cair imensamente entre 2004 e 2012, o desmatamento voltou a crescer no Brasil e explodiu em 2019.

Apesar de algumas boas notícias aqui e ali (como o declínio do desmatamento na Indonésia em 2017-2018), nos últimos cinco anos, a derrubada de florestas globalmente cresceu 44% em comparação com os cinco anos anteriores. A degradação das florestas e dos solos segue a mesma tendência.

As promessas de restauração florestal ultrapassam os 170 milhões de hectares, excedendo os 150 milhões estabelecidos para uma meta em 2020, mas ainda a meio caminho da meta para 2030. Mas, quando olhamos para as estimativas do que está sendo efetivamente restaurado, é inferior a 20% do que nos comprometemos a alcançar em 2020.

Os dados lançados recentemente pelo MapBiomas mostram que o Brasil tem uma estimativa de mais de 40 milhões de hectares de vegetação natural em regeneração. O que parece ser uma excelente notícia é, na verdade, uma constatação desoladora.
Mais de 95% desta área não são resultado de um processo virtuoso de restauração. De fato, são áreas degradadas que foram abandonadas.

Uma análise dos últimos 30 anos mostra que a cada dez hectares de florestas primárias desmatadas, seis se tornaram pastagens de baixa produtividade, três são abandonadas e apenas um hectare se tornou terra agrícola produtiva ou infraestrutura urbana.

Isso não faz nenhum sentido.

Algumas iniciativas, como a moratória do desmatamento para soja na Amazônia, iniciada em 2008, provaram ser um sucesso. As plantações de soja em áreas que eram florestas até 2008 são realmente mínimas. Mas, infelizmente, as empresas relutam em expandir o mecanismo para outros biomas (o Cerrado e o Chaco, onde o desmatamento corre solto) ou outras commodities.

Estamos falhando em alcançar nossos objetivos para um manejo sustentável no planeta. Não por uma pequena margem. Na verdade, estamos muito longe de nossas metas.

O ponto de ruptura dos ciclos de preservação da vida no planeta pode estar muito próximo e não podemos nos dar ao luxo de atravessá-lo. Não podemos esperar o próximo plano de dez anos para agir.

É hora de limpar as cadeias de suprimentos de qualquer coisa relacionada ao desmatamento, seja legal ou ilegal. É preciso que empresas falem em alto e bom som contra qualquer movimento para minar as áreas protegidas e os direitos indígenas.

Para as empresas de hoje, não basta ser do bem. É preciso serem ativistas dos negócios.


É o que minha filha diria. É isso que a Greta Thunberg e as crianças do mundo estão gritando conosco. Esse é o legado para o qual vale a pena existir.

Publicado em O Globo, 25.09.2019

quarta-feira, 18 de setembro de 2019

Brazil has the skill to stop the Amazon first. It lacks the will


As heads of state prepare to make bold statements about climate change and sustainable development at the upcoming UN General Assembly here in New York, the Amazon region continues to burn. Satellite imagery pinpoints thousands of new fire alerts each week. NASA and the Brazilian Space Agency have warned that the levels of clearing and burning is far higher than in recent years. Politicians are bickering over who is responsible and what needs to be done.

Last week, leaders of the nine countries that share responsibility for the Amazon territory, met in the town of Leticia, Colombia, and issued a statement reaffirming their sovereignty over the region and pledging to do a better job. It as a tepid declaration, but it represented a significant improvement on previous statements from some of those leaders—including the current presidents of Brazil and Bolivia, who had previously claimed that there is nothing to be concerned about. Days ago, a group of prominent U.S. Senators, including presidential hopefuls, called for a halt to trade talks with Brazil if its government doesn't improve its rainforest protection.

For those of us who have worked in the region for decades, the most frustrating aspect of this political display is that Brazil already knows exactly how to protect the Amazon rainforest. In fact, Brazil is the only tropical country that successfully reduced loss of tropical forests on a huge scale, beginning in the mid-2000s.

The most urgent need is for the Brazilian government to revive its successful program that had combined daily analysis with its own satellite network to spot illegal clearing (estimated by MapBiomas to be over 90 percent of all clearings) and fires with effective enforcement on the ground. In the years following 2005, Brazil managed to reduce forest clearing in the Amazon by an astounding 70 to 80 percent. In contrast, the current government has defunded this work and weakened enforcement. Now is the time to display renewed leadership in this critical area and even help its neighbors by sharing lessons, capacity, and technology.

Second, we know that protecting Indigenous peoples' territories and the lands of traditional communities, such as rubber tappers and Brazil nut harvesters, is a great way to conserve rainforests. It's also consistent with international human rights law and the wishes of these vulnerable communities. Some Amazonian Indigenous communities have intentionally chosen to completely avoid direct contact with non-Indigenous people. These communities are threatened by the expansion of road building, logging, and farming. In recent decades, Brazil, Colombia, Ecuador, and other countries in the region have made great strides in expanding recognition and protection of those who depend on the forest and this needs to continue. The reversal of this attitude by the current Brazilian government is nothing less than a direct attack on the lives and livelihoods of these communities. Some have likened this to incitement of genocide.

The third, scientifically proven solution for rainforest conservation is careful and profitable use of the forest by companies and communities alike. The Amazon boasts an incredible wealth of natural products—not surprisingly, since it is home to more species of animals and plants than anywhere else on Earth. The responsible harvest of fruits, oils, nuts, fish, medicines, fibers, and even wood from low intensity logging—along with ecotourism—are all compatible with forest protection and can support dignified livelihoods that provide additional incentives to protect the ecosystem.

Finally, there is a vital role for governments and businesses to play beyond Brazil. Last week H&M, the second largest fashion retailer globally, committed to cease buying leather altogether from Brazil, following other major brands, including North Face. Such boycotts are not ideal since they undermine those working legally and without deforestation both in the Amazon as well as other parts of the country. Any company that knows or suspects its supply chain may include products that may be contributing to forest loss and fires in the Amazon region should immediately engage suppliers to guarantee traceability that ensures this is not the case. If they cannot, then the boycott of those suppliers is justified and a powerful statement. Pension funds and investors should do the same, as some Swedish and Norwegian groups have already done.

Foreign governments have been longtime partners with Brazil, Colombia, Peru and other countries in the region, helping to finance efforts to better manage the Amazon. Wealthy nations must greatly increase their support for Amazon conservation, given the global importance of the region in regulating climate and weather patterns. The G7's offer of $22 million is beyond meager in comparison to the $945 million in donations to restore the Notre Dame cathedral after it burned. Brazil and other governments should welcome this partnership and well-intended offer of support, rather than tout conspiracy theories that there is a global plot to take control of the Amazon; besides, more than enough land has already been cleared to support massive expansion and intensification of its agricultural output for decades to come.

While we welcome the UN's important deliberations later this month, the time for speechmaking is long gone. It's time for action. Governments and companies, and their expert advisors and investors, should heed the outcry over in Brazil and around the world over the destruction of the Amazon and lead the way to a boldly hopeful climate future.

Tasso Azevedo is the former Chief of the Brazilian Forest Service and coordinator of MapBiomas. 

Nigel Sizer is Chief Program Officer with Rainforest Alliance.

Published in Newsweek Magazine 18.09.2019

quinta-feira, 29 de agosto de 2019

O pior do fogo pode ainda esta por vir



A quantidade de incêndios na Amazônia entre os meses de janeiro e agosto cresceu mais de 80% em 2019, quando comparada com 2018. Houve anos piores, mas ainda estamos no início da estação do fogo, e os próximos meses são de alto risco.

Ao cruzar os dados, observa-se uma enorme sobreposição entre as áreas de alertas de desmatamento e as áreas de focos de calor (fogo) detectados por satélite. O fogo de fumaça densa e alta é típico de queima de floresta. Não se trata de uma simples limpeza de pasto, em geral caracterizada por uma fumaça mais rala e rasteira.

Os incêndios florestais dependem essencialmente de dois fatores: combustível e ignição. A floresta derrubada quando seca é o combustível, e a ignição em estação seca é quase sempre uma ação antrópica. Não é acidente.

É parte da dinâmica do desmatamento em regiões tropicais. Primeiro, se põem abaixo as grandes árvores; depois passa o correntão para derrubar a vegetação mais baixa; e depois de algumas semanas secando, ateia-se fogo a fim de terminar o serviço.

A floresta que queima agora foi derrubada em abril, maio e junho. O que veio abaixo em julho e agosto vai queimar em setembro e outubro. Como a área detectada de desmatamento cresceu muito em julho (278%) e agosto (118% até o dia 23), o pior do fogo ainda está por vir.

É fundamental reduzirmos o combustível e evitarmos a todo custo novas ignições. É preciso que se determine a moratória do uso do fogo na Amazônia, no Cerrado e no Pantanal até o final da estação seca, ou seja, pelo menos até o final de outubro. Junto com esta medida, é essencial uma campanha ostensiva de comunicação, nos moldes das campanhas para eliminar os focos de reprodução do mosquito da dengue, para restringir o uso do fogo como prática agrícola.

Por outro lado, é urgente uma ação de força com o objetivo de estancar o desmatamento que está acelerando. Mais de 90% do desmatamento são ilegais, e muitas vezes estão ligados às máfias de roubo de madeira, ao garimpo e à grilagem de terras. Esses grupos criminosos são alimentados pela impunidade.

São necessárias ações exemplares de fiscalização. Primeiro, nas áreas protegidas como Unidades de Conservação e Terras Indígenas, focando nos garimpos e nas áreas recentemente desmatadas, com apreensão de máquinas e equipamentos e, se necessário, sua inutilização.

E em segundo lugar, é necessário promover o imediato embargo de todas as áreas do Cadastro Ambiental Rural com desmatamento ilegal — começando por aquelas identificadas nos alertas do Sistema de Detecção de Desmatamentos em Tempo Real (Deter) e com laudos completos já detalhados pelo MapBiomas Alerta.

A fim de lidar com a pressão da grilagem, deve-se estabelecer a distinção para uso sustentável das Terras Públicas Não Destinadas na Amazônia. Para estimular atividades sustentáveis, é preciso restringir o crédito rural às atividades que não envolvam desmatamento, combater os madeireiros que atuam ilegalmente e ampliar significativamente as áreas de concessão florestal.

O que vivemos é uma crise real, que pode se transformar numa tragédia anunciada com incêndios muito maiores que os atuais se não forem freados imediatamente. É hora de juntar forças, e não dividir.

Nós temos que aprender com a história. Todos os momentos de sucesso em derrubar as taxas de desmatamento — como entre 2004 e 2012 — foram forjados em um ambiente de ações compartilhadas entre os governos federal e estaduais, organizações não governamentais, o setor empresarial, cientistas e a comunidade local. Falta-nos hoje liderança para agregar. Para desagregar, está sobrando.

Publicado em O Globo, em 27.08.2019

quarta-feira, 31 de julho de 2019

A casa está em chamas



O  desmatamento na Amazônia disparou e saiu completamente do controle em julho. Os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (Deter/Inpe) mostram 1.864 quilômetros quadrados  desmatados até 26 de julho, mais de três vezes a área tombada em todo o mês de julho de 2018. É a maior área detectada em um mês desde a criação do Deter,  em 2004. Comparando o primeiro semestre deste ano com o mesmo período em 2018, há uma tendência de crescimento de mais de 50% no desmatamento em 2019.

A prática  tem crescido especialmente em terras indígenas e Unidades de Conservação,  que estão sendo invadidas por milhares de grileiros, garimpeiros e desmatadores em geral. Em uma única área em Altamira (PA), dentro da Área de Proteção Ambiental do Xingu, foi detectada  uma derrubada de 32 quilômetros  de floresta entre 5 de maio e 20 julho. Isso equivale a mais de dois  milhões de árvores tombadas em 70 dias para virar pasto num espaço quase do tamanho do Parque Nacional da Tijuca (39 quilômetros quadrados). Nesse período,  foram emitidos mais de 20 alertas do Inpe sobre o desmatamento em curso.

O levantamento do MapBiomas — iniciativa multinstitucional de validação dos alertas de desmatamento — indica que mais de 90% do desmatamento acontecendo na Amazônia são  ilegais.

Era de se esperar que o governo estivesse agindo de forma decisiva para combater o desmatamento, mas,  em vez disso,  o presidente e ministros gastam seu tempo reclamando do destaque dado ao tema na imprensa internacional e desacreditam o portador da notícia. Colocam  em dúvida, sem nenhuma base factual, o instituto que conduz desde  os anos 80 o mais longo e completo programa de monitoramento do desmatamento do planeta.

Lideranças do setor do setor rural assistem à  tragédia reclamando do tratamento dado ao Brasil na imprensa internacional,  com receio de que isso atrapalhe os negócios, feche mercados e dificulte a implementação do acordo comercial do Mercosul com a União Europeia.

É preciso que estas lideranças saiam da zona de conforto, parem de assistir à cena passivelmente e deem um recado claro ao poder publico: é  inaceitável a invasão de terras indígenas e unidades de conservação (assim como consideram inaceitável a invasão de propriedade privada) e toda forma de desmatamento e exploração ilegal da vegetação nativa. O poder público tem que fazer uso imediato de todos instrumentos e poderes conferidos pela Constituição para cessar imediatamente estas práticas e restaurar a ordem no Brasil.

A casa está pegando fogo. Não é só a comida que queimou no fogão que a gente joga fora e faz outra. É o apartamento que está em chamas e colocando em risco todo o condomínio. Tem que que acionar o síndico, o zelador, ligar para o bombeiro e agir já! Daqui a pouco pode ser tarde demais.

Publicado em O Globo 31.07.2019

quinta-feira, 27 de junho de 2019

O Pior Inimigo do Agronegócio


Nada menos do que 95% dos alertas de desmatamentos nos primeiros três meses de 2019 no Brasil aconteceram em áreas onde não havia autorização, e 40% aconteceram em áreas que deveriam estar protegidas de qualquer tipo de desmatamento ou degradação.

Estes são os dados do projeto MapBiomas Alerta, que valida com imagens de alta resolução e gera laudos completos para cada desmatamento detectado em todo o Brasil pelos sistemas de alertas em operação como Deter/Inpe, SAD/Imazon ou Glad. Foram validados 4.755 alertas cobrindo mais de 89 mil hectares que se espalham por todos os biomas e todos os estados brasileiros. Mais de 3.500 propriedades rurais foram afetadas com desmatamento.

O Brasil tem mais de cinco milhões de propriedades registradas no Cadastro Ambiental Rural (CAR), e a fração que está desmatando em pleno 2019 representa menos de 0,2% do total de propriedades. Ou seja, o desmatamento é coisa da minoria, mas o estrago é para todos.

É estarrecedor o grau de ilegalidade verificado no desmatamento no Brasil. O caminho para acabar com essa praga passa necessariamente por garantir que aquele desmata ilegalmente seja exemplarmente punido e repare – em campo – o dano causado. Esta posição tem sido defendida não só por ambientalistas, mas também por coletivos multissetoriais como a Coalizão Clima, Floresta e Agricultura e associações de classe empresariais como Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) e Industria Brasileira de Árvores (IBA).

Mas tem gente querendo cortar o caminho aplicando uma verdadeira pelada florestal. Em vez de se adequar à lei, querem mudar o Código Florestal para acabar com a Reserva Legal (área mínima a ser protegida nas propriedades rurais) e com o licenciamento ambiental para autorização de desmatamento e rever e reduzir as Unidades de Conservação e Terras Indígenas.

Com uma canetada, querem jogar o Brasil no centro do atraso civilizatório, com consequências não só para a disponibilidade de serviços ambientais (exemplo, disponibilidade de água, polinização e patrimônio genético) mas também para o acesso ao mercado internacional cada vez mais comprometido para o fim do desmatamento das cadeias de produção globais.

Esta gente que propõe tais desfigurações da legislação ambiental representa as forças mais atrasadas do agronegócio brasileiro – aquele meno de 1% que quer ver anistiado o seu desmatamento ilegal. Durante anos, uma boa parte do restante do agronegócio se deixou representar por estas forças retrógradas e parecem agora estar despertando. Essa minoria retrógrada não pode destruir a imagem e a base dos recursos naturais fundamentais para manter e fomentar uma agropecuária pujante e sustentável. Se o fizerem, se tornarão os piores inimigos do agronegócio e do meio ambiente no Brasil.

Publicado em O Globo em 27.06.2019

quarta-feira, 29 de maio de 2019

Fundo Amazonia: time que esta ganhando


O ciclo de preparação e aprovação de projetos de cooperação internacional leva anos até que os recursos cheguem, e o projeto possa ser implementado e dar resultados.

Foi observando uma gôndola de tomates orgânicos no supermercado em meados de 2007 que tive o estalo. Pagamos um preço mais alto por aquele tomate porque ele já era certificado como orgânico, e não porque havia uma promessa de sê-lo no futuro. O valor que pago a mais poderá ser usado como o produtor decidir, mas este saberá que se da próxima vez não tiver produto certificado, não receberá o prêmio.

Desenhamos então em algumas semanas a proposta de um fundo que receberia recursos proporcionais à redução de emissões de carbono pelo desmatamento na Amazônia Brasileira. Assim foi criado o Fundo Amazônia. O mecanismo é simples, mas robusto. O Inpe mede o desmatamento anual, e os dados são submetidos a um comitê científico que avalia quanto houve de redução de emissões comparado com a média dos dez anos anteriores e autoriza a captação doações na proporção de US$ 5 por tonelada de emissões carbono efetivamente reduzida.

A redução do desmatamento é resultado de ações de inúmeros atores na esfera pública, privada e do terceiro setor. Por isso, o Amazônia foi criado como um fundo privado de interesse público gerido pelo BNDES. Os recursos não pertencem ao governo.

Para definir as regras e prioridades de destinação dos recursos, foi estabelecido o Comitê Orientador do Fundo Amazônia (Cofa), com 23 membros, incluindo representantes de oito ministérios, dos nove governos dos estados da Amazônia, dois do setor privado, um da academia, um dos trabalhadores rurais, um das populações indígenas e um do Fórum Brasileiro de ONGs.

O Cofa não avalia ou aprova projetos para evitar qualquer conflito de interesses. Para acessar os recursos, qualquer organização — seja de governo, academia, empresas e ONGs — tem que apresentar projeto. O ciclo de aprovação e gestão é feito pelo BNDES e auditado de forma independente tanto pelo conteúdo e impacto quanto nos aspetos financeiros e contábeis.

As regras do Fundo Amazônia foram propostas integralmente pelo Brasil, e foi com base nelas que foram assinados os contratos de doação da Noruega e Alemanha. Os doadores aportam os recursos e não dão palpite sobre os projetos e iniciativas a serem apoiadas desde que as regras e a governança acordada sejam preservadas.
Em dez anos, o Fundo recebeu mais de R$ 3 bilhões e viabilizou projetos de governo (dois terços dos recursos) e sociedade civil que tornaram possíveis verdadeiras revoluções, como a implementação do Cadastro Ambiental Rural e o Programa Origens Brasil — só para citar dois.

O Amazônia se tornou o maior fundo de proteção de florestas e a maior iniciativa de Redução das Emissões por Desmatamento e Degradação do planeta, tendo inspirado a criação de mecanismos similares em países como Indonésia, Guiana, Colômbia e Peru.

É um time que está ganhando, de goleada, e não tem qualquer motivo para ser desfeito. Mas este não parece ser o entendimento do governo federal. Num movimento despropositado, o Ministério do Meio Ambiente levantou suspeitas sobre a gestão do fundo que se mostraram infundadas. E agora tenta mudar as regras do jogo, desfigurando o Cofa e querendo desviar os recursos para aplicar em indenizações, o que não é permitido nem pelas regras do Fundo nem do BNDES.


Ao fazer este movimento brusco, o governo federal pode fazer a sociedade brasileira perder quase R$ 2 bilhões. Não merecemos isso com tamanha crise que vivemos. Alô, Paulo Guedes! Pode isso?

Publicado em O Globo em 29.05.2019

quarta-feira, 1 de maio de 2019

Ameaça ao Ambiente e ao Agronegócio


Um país que tem ao mesmo tempo a maior biodiversidade e as maiores taxas de desmatamento do planeta não pode se dar ao luxo de desmantelar e enfraquecer seus órgãos de controle

A recente cruzada do governo federal e sua base parlamentar contra toda a estrutura de regulação, fiscalização e conservação ambiental tem potencial de trazer provocar enormes impactos sobre os recursos naturais e as comunidades tradicionais como pode afetar de forma profunda a imagens do agronegócio brasileiro no mercado internacional e até em setores do mercado nacional.

Num país que tem ao mesmo tempo a maior biodiversidade e a maior reserva de água doce do planeta, e a maior taxa de desmatamento do planeta de homicídios de ativistas ambientais e lideranças de comunidades tradicionais, não pode ser dar ao luxo de desmantelar e enfraquecer seus órgãos de controle como tem sido feito com IBAMA e ICMBio e propor medidas que estimulam o uso da violência como forma de resolver conflitos no campo.

Nas ultimas duas décadas a estrutura ambiental e de direitos humanos brasileira veio sendo fortalecida com o combate ao trabalho escravo, a estruturação de um programa de reforma agrária, a demarcação de terras indígenas, a criação de unidades e o monitoramento e combate ao desmatamento. Como resultado o pais viu os índices de desmatamento reduzirem, o fluxo migratório para os grandes centros urbanos  ser revertido e ao mesmo tempo a produção e as exportações do agronegócio tiveram o seu período de maior expansão. Missões brasileiras no exterior podiam dizer com orgulho que estávamos progredindo na agenda socioambiental, produzindo com eficiência e qualidade e abrindo com força os mercados internacionais aos produtos brasileiros.

A agenda anti-socioambiental da chamada bancada ruralista iniciada ainda no governo Dilma, acelerada no governo Temer chegou ao ápice com o governo de Jair Bolsonaro. Nos primeiros quatro meses de governo além de promover o desmonte das estruturas de proteção social e ambiental no meio rural, investiu para cortas as pontes de alianças com a sociedade civil organizada que ao longo de décadas foram fonte criativa de um sem número de iniciativas de políticas publicas como o próprio Cadastro Ambiental Rural – principal ferramenta do novo Código Florestal.

Grilagem, invasão de unidades de conservação e terras indígenas, desmatamento e exploração ilegal de madeira estão entre as principais mazelas que atrasam o nosso desenvolvimento rural sustentável. Mas, nem de longe representam o grosso da produção rural brasileira. São uma fração pequena, mas muito barulhenta, que esta empurrando todo o setor para uma o abismo.

É preciso o setor moderno e competitivo do agronegócio brasileiro reagir e tomar as rédeas cobrando do governo menos ideologia e mais racionalidade, menos discurso vazio e mais dialogo e por fim uma agenda comprometida com a sustentabilidade e a implementação do código florestal como esta. Salvar a agenda a socioambiental é essencial para a sobrevivencia do agronegócio competitivo no Brasil.

Publicado em O Globo em 01.05.2019

Fatos Florestais: caem mitos que opõem produção à conservação no Brasil




Em formato de conversa entre o engenheiro florestal Tasso Azevedo, do Observatório do Clima, e a atriz Camila Pitanga, o filme Fatos Florestais é uma parceria entre o Observatório do Clima, a Produtora Imaginária e o cineasta Fernando Meirelles, da O2 Filmes.
Em 13 minutos, o vídeo Fatos Florestais expõe dados sobre uso da terra e conservação no Brasil a partir do cruzamento de duas grandes bases públicas de informações: o projeto MapBiomas, que mapeou todas as alterações da cobertura vegetal no país nos últimos 35 anos, e o Atlas da Agropecuária Brasileira, criado pela Esalq-USP e pelo Imaflora, que mapeou a situação fundiária do país inteiro.
Fatos Florestais também recorre a dados da FAO (Organização das Nações Unidas para a Agricultura e Alimentação), da Embrapa e do Inpe (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais).
FICHA TÉCNICA
Produção: Fernando Meirelles, Observatório do Clima e Produtora Imaginária
Com: Tasso Azevedo e participação de Camila Pitanga
Direção: Gisela Moreau
Roteiro: Oswaldo Braga de Souza, Claudio Angelo, Tasso Azevedo e Fernando Meirelles
Assistentes de direção: Fred Rahal Mauro e Danila Bustamante
Animação: Marina Quintanilha
Ilustrações: Marina Quintanilha e Gisela Moreau
Câmera: Tiago Laires
Edição: Fred Rahal Mauro e Danila Bustamente
Musica, sound design e finalização de áudio: Quincas Moreira
Assistentes de estúdio: Lucca Carvalho e Heitor Peres
Agradecimentos: O2 Filmes, ISA, Luiz Bolognese, Carlos Rittl e Raul Telles do Vall

quarta-feira, 24 de abril de 2019

A Floresta Exige Lei


O Brasil é referência internacional no trabalho de detecção de desmatamentos ilegais — convém, portanto, deter-se no processo que nos trouxe até aqui. No fim dos anos 1980, a Amazônia ganhou as manchetes da imprensa em todo o mundo. As imagens da floresta em chamas e o assassinato, a tiros de escopeta, do líder seringueiro Chico Mendes, em dezembro de 1988, foram estopins para chamar a atenção global para o rápido avanço da devastação da região. Não havia internet aberta ao público, mas nem por isso tais notícias deixaram de correr o planeta nas capas de jornais e revistas.

Em maio de 1992, pouco antes do início da Eco 92, a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada no Rio de Janeiro, o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) publicou o relatório do Programa de Monitoramento da Floresta Amazônica Brasileira por Satélite (Prodes), o primeiro no mundo de monitoramento de florestas tropicais por meio de sensoriamento remoto.

Desde 1975, quando entraram em funcionamento as primeiras versões do satélite Landsat, o Inpe tornara-se um dos pioneiros na captação e no processamento de imagens da Terra. Um dos usos iniciais foi estimar a área desmatada na Amazônia. Naquela época, o cálculo revelou que apenas 0,6% do bioma era afetado. O primeiro levantamento do Prodes estimou a área desmatada anualmente na Amazônia, entre 1978 e 1988, em 21 000 hectares por ano, taxa que se foi reduzindo nos anos seguintes até chegar a 11  100 quilômetros quadrados em 1991. Durante o período avaliado, em 1988, foi promulgada a nova Constituição do país, com forte capítulo ambiental e de direitos indígenas, seguindo-se a criação do Ibama e a primeira leva de expansão das áreas protegidas.

A partir de 1992, na esteira da crise que culminou com o impeachment de Fernando Collor, o desmatamento, no entanto, voltou a subir e atingiu, em 1995, um pico de 29 000 quilômetros quadrados por ano — até ali, o mais alto índice registrado em toda a série histórica. Foram criadas, então, mais áreas protegidas; a lei de crimes ambientais foi aprovada e o Ibama intensificou a fiscalização. Como resultado, o desmatamento caiu para 13 000 quilômetros quadrados em 1997. Contudo, voltou a crescer e atingiu 27 000 quilômetros quadrados em 2004.

Naquele mesmo ano, o Inpe deu mais um salto de inovação e implementou um sistema pioneiro de detecção mensal de alertas de desmatamento, o Deter. As equipes vasculhavam a Amazônia apontando locais onde poderia haver desmatamento. Os dados eram publicados mensalmente e de forma aberta para que qualquer cidadão pudesse checá-los. O Deter representou uma revolução para os sistemas de fiscalização. Sabendo-se onde havia indícios de desmatamento, era possível planejar muito melhor as operações de campo.

Aliado a outras iniciativas do Plano de Prevenção e Combate do Desmatamento na Amazônia Legal, como a ampliação das áreas protegidas e o combate à corrupção associada à exploração madeireira, o desmatamento passou por um período prolongado de queda até 2012. Naquele ano, a prática atingiu o menor nível histórico, com 4 600 quilômetros quadrados — uma queda de quase 80% em relação à média das décadas anteriores. A existência desse monitoramento foi o que permitiu ao Brasil comprovar o decréscimo do desmatamento e receber mais de 1,2 bilhão de dólares de doações para o Fundo Amazônia. Entretanto, e infelizmente, o cenário se reverteria.

Em 2012 foi aprovado o novo código florestal, com enorme anistia a desmatamentos anteriores a 2008, tornando compulsório o cadastro ambiental rural. A partir do governo Dilma, a criação de unidades de conservação e demarcação de terras indígenas caiu e ações de revisão de limites de unidades de conservação, até então impensáveis, começaram a surgir. Esse processo intensificou-se no governo Temer. Como resultado, o desmatamento voltou a crescer e alcançou 8 000 quilômetros quadrados em 2018.
   
Atualmente, o Deter utiliza um conjunto maior de sensores, com alta resolução, e gera dados quase diariamente sobre o desmatamento na Amazônia e no cerrado. Com base na experiência bem-sucedida do Inpe, outros sistemas de monitoramento independentes surgiram, entre eles o SAD, da organização Imazon, que produz alertas mensais de desmatamento na Amazônia desde 2007, e o Glad, da Universidade de Maryland (EUA), que divulga dados desde 2016. O próprio Inpe, que também monitora a Mata Atlântica desde a década de 90, em parceria com a SOS Mata Atlântica, ampliou o monitoramento anual e mensal para o cerrado. Hoje existem em operação no Brasil onze sistemas de monitoramento.

Apesar de todo esse aparato, as taxas de desflorestamento voltaram a crescer, acompanhadas de alta ilegalidade, visto que a sensação de impunidade é predominante. Em 2018, só os três principais sistemas de monitoramento (Deter, SAD e Glad) geraram e disponibilizaram acima de 150 000 alertas. Destes, menos de 1% foi aproveitado e transformado em ações de fiscalização. Um estudo de 2013 já mostrava que menos de 10% das multas aplicadas são pagas — e nem 1% do valor devido é arrecadado. Ou seja, o risco de ser efetivamente penalizado pelo desmatamento ilegal é muito baixo. Três fatores se destacam: o excessivo tempo gasto para processar as informações e gerar os laudos de fiscalização, a limitação de recursos humanos e orçamentários de órgãos ambientais e a falta de vontade política de combater a impunidade.

Em dezembro de 2018 foi criado o MapBiomas Alerta, que vai consolidar os sistemas de monitoramento em operação no Brasil. Trata-se de iniciativa de uma rede de ONGs, universidades e empresas de tecnologia. O MapBiomas detalha, com o auxílio de imagens de satélite diárias de alta resolução, cada um dos alertas gerados pelos sistemas existentes. Com essa informação, são criados automaticamente laudos que mostram a floresta antes e depois do desmatamento e identificam a data do crime. Os laudos, que equivalem a uma imagem de radar de trânsito, serão disponibilizados gratuitamente para os órgãos de controle, além de ficarem acessíveis a todo o público, por meio de uma plataforma transparente na internet. O sistema vai cobrir todo o território brasileiro.
Um exemplo de enfrentamento da dificuldade de fiscalização é uma iniciativa apoiada pelo Fundo Amazônia chamada Programa Municípios Verdes no Estado do Pará. Por meio dela, sociedade e órgãos de controle de doze municípios com altas taxas históricas de desmatamento usavam os dados de monitoramento mensal gerados pelo SAD/Imazon e promoviam a fiscalização efetiva de cada aviso de desmatamento. No período de implementação do projeto (de 2012 a 2015), o desmatamento caiu a quase zero nesses municípios.

Descrevi todo esse cenário para frisar que não precisamos gastar milhões de dólares para implementar novos sistemas de monitoramento, como tem sido aventado por setores do governo. O problema do desmatamento só se resolverá de fato se houver vontade política, cooperação entre as autoridades e a sociedade e investimento nos órgãos de controle para que seja possível garantir a punição exemplar dos desmatadores ilegais.


A desculpa da falta de monitoramento não cola mais. É preciso uma espécie de Lava-Jato do desmatamento, e que se atente mais para a degradação ambiental no Brasil. Chega de impunidade.


Publicado em VEJA de 24 de abril de 2019, edição nº 2631 

quarta-feira, 3 de abril de 2019

A Internet da Energia



A mais longa linha de transmissão de energia elétrica no mundo está no Brasil e liga as usinas de Santo Antônio e Jirau em Porto Velho (RO) a Araraquara (SP), num trajeto de 2400 quilômetros. Mas este é um recorde destinado a ser batido várias vezes nos próximos anos com a implantação das linhas de transmissão intercontinentais.

Transmitir energia por longas distâncias é fundamental para massificar a adoção de fontes renováveis de energia. As unidades geradoras muitas vezes estão longe dos centros de consumo, como acontece com parte das hidrelétricas e parques eólicos no Brasil.  O SIN (Sistema Interligado Nacional) permite o encontro entre a geração e o consumo.

Quando a eletricidade é gerada em térmicas a carvão, derivados de petróleo e gás, não existe necessidade de transmitir energia a grandes distâncias; opta-se por transportar o combustível para o local das usinas. Mas esta solução, que representa a maior parte da geração de eletricidade no mundo hoje, é uma das principais fontes de poluição. À medida que precisamos melhorar a qualidade do ar e reduzir as ameaças das mudanças climáticas provocadas pela emissão de gases de efeito estufa, teremos que multiplicar o uso de energias renováveis.

Um sistema interligado global irá conectar os locais de grande potencial de geração de energia solar, eólica, geotérmica e hidrelétrica com os centros de consumo, ao mesmo tempo que permitirá equalizar oferta e demanda nas diferentes horas do dia e condições de geração (por exemplo, presença de vento ou disponibilidade hídrica). Será uma espécie de internet da energia – pode ser gerada e consumida em qualquer parte.

O grande limitador para gerar este grid global é a perda de energia no transporte a grandes distâncias. Os sistemas de alta voltagem, dominantes hoje, têm perda de 6% a 20% a cada mil quilômetros, tornando inviável, por exemplo, atravessar o Atlântico. Nos últimos anos, com o desenvolvimento de novas tecnologias de transmissão de energia de ultra alta voltagem, que reduzem as perdas a 2% por mil quilômetros, a possibilidade de constituir um grid interconectando os continentes e regiões passou a ser uma possibilidade concreta.

A iniciativa Global Energy Interconnection, que conta com o Nobel de Física Steven Xu como um dos líderes e tem forte suporte da China, está promovendo um mapa do caminho para criar esta internet da energia até 2030 e interconectar todo o planeta até 2050.

Parece um sonho distante, mas vale lembrar que o primeiro cabo de fibra óptica intercontinental foi instalado nos anos 1990, ligando os EUA à Europa. Hoje, são mais de 1 milhão de quilômetros de cabos de fibra ótica instalados ligando todos os continentes e por onde passam 99% do tráfego da internet. Da mesma forma como esta infraestrutura possibilitou a democratização do acesso à informação e comunicação, pode acontecer com a energia através do grid global.

Publicado em O Globo, 03.04.2019

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2019

Energia para Roraima



O agravamento da crise na Venezuela é sentido em todo continente, mas em nenhum lugar o impacto tem sido tão sentido quanto em Roraima. Dentre as várias frentes de dificuldades esta o provimento da energia elétrica para o único ainda não conectado no Sistema Interligado Nacional (SIN).

A principal fonte de energia elétrica para Roraima é a Usina Hidroelétrica de Guri na Venezuela, mas com as dificuldades de manutenção e operação do sistema venezuelano, agravada pelas sansões econômicas dos EUA, tem disso cada vez mais comuns os blecautes e cortes de energia o que obriga acionar termoelétricas a óleo combustível a um custo de quase R$ 2 mil/MWh, quase dez vezes o valor da energia venezuelana. 

Há anos os orgãos reguladores do sistema elétrico brasileiro se debruçam sobre o problema. A solução de longo prazo, ideal é a interligação no SIN. Há um projeto contratado de construção de um linhão de 715 km ligando Manaus a Boa Vista. A obra atravessa 120 km pela Terra Indígena Waimiri-Atroari e o processo atropelado de licenciamento tem impedido a emissõa da licença de instalação. A partir da licença serão pelo menos 3 anos para construção.  Outra alternativa em estudo, é a construção da UHE Bem Querer na Bacia do Rio Branco que corta o estado. Um projeto complexo que se encontra ainda no processo de avaliação prévia e consultas. Inundaria uma área de 560 km2 (equivalente a metade do Município do Rio de Janeiro) para gerar uma média de 400 MWh com um custo de construção estimado em R$ 10 bilhões – ou seja uma área de inundação equivalente a Belo Monte para gerar um décimo da energia e com triplo do custo por MWh. Existe ainda a possibilidade de usar biomassa, se valendo de 30 mil hectares de florestas plantadas existentes no estado, mas isso daria para uma parcela pequena da demanda do Estado.

As alternativas mais interessantes no curto e médio prazo parecem ser a energia eólica e solar acoplado a sistema de bateria para garantir ir o fornecimento constante de energia. 

Embora o estado não tenha um inventário detalhado do potencial eólico, estima-se que somente no norte do Estado o potencial supere os 3 GWh. Torres experimentais instaladas pelos Makuxis com o propósito inicial gerar energia para consumo das comunidades locais, demostram um potencial maior que a demanda do Estado só na TI Raposa Serra do Sol. Roraima tem um potencial médio de 5 KWh/m2/dia em painéis fotovoltaicos. Com apenas 1 km2 de painéis é possível dar conta de toda demanda de energia do Estado (~210 MWh médio). Um parque de baterias que dê conta de estabilizar energia solar e eólica ocuparia uma área de 0,1 km2. O investimento total para um sistema eólico/solar/bateria ficaria na casa de US$ 1,5 a 2 bilhões e pode ser implementado de forma modular ao longo de 2 anos gerando anergia já a partir dos primeiros meses de implantação.

Em maio acontece o leilão de energia para Roraima quem sabe não temos uma boa surpresa e o estado entra no mapa mundial como o primeiro totalmente abastecido modelo eólico/solar/baterias.

Publicado em O Globo em 27.02.2019

quinta-feira, 14 de fevereiro de 2019

Fake News Florestal


Circula pelo WhatsApp um vídeo de uma palestra que supostamente demonstra, com uma sequência impressionante de números, que o Brasil encolheu. O palestrante sugere que o país conserva florestas demais e tem tanta área protegida, tanta terra indígena e tanta exigência de preservação que ficou sem espaço para desenvolver a agropecuária. Como tantas outras histórias do zapzap, esta também é fake news.

É verdade que há muita área ainda com vegetação nativa no Brasil. Os dados do projeto MapBiomas, uma rede brasileira de 15 instituições de pesquisa que mapeou todas as mudanças no uso da terra no Brasil desde 1985 até 2017, mostram que o país tem 67% do território coberto por florestas e campos naturais. Mas nem de longe estamos sozinhos em termos de conservação: 70% da Rússia está coberta por vegetação nativa, incluindo uma área florestal quase do tamanho do Brasil. Há cerca de 30 países com mais de 60% de cobertura florestal, incluindo a Coreia do Sul, com 63%, a Suécia, com 67% e o Japão, com 68%. 

O Brasil, por outro lado, é o quarto maior produtor de alimentos do planeta, atrás de China, Índia e EUA, e tem a terceira maior extensão de terras sob produção agropecuária, atrás apenas de China e EUA. O MapBiomas mostra que o país tem hoje 245 milhões de hectares em pasto e lavoura. É 1,17 hectare de área produtiva por habitante, mais do que nos EUA (1 ha) e que a populosa China (0,34 ha). 

Cerca de 25% do Brasil está dentro de terras indígenas e unidades de conservação. São 216 milhões de hectares, excluindo as APAs, categoria de área protegida que permite produção e ocupação (o Distrito Federal tem 80% de seu território dentro de uma APA). Só que essas áreas protegidas estão muito mal distribuídas: 90%, ficam na Amazônia, que concentra apenas 10% da produção agropecuária. Fora da Amazônia, apenas 5% do território está sob áreas protegidas. E é fora da Amazônia que ocorre 90% da produção agropecuária.

Além disso, uma porção enorme das áreas protegidas amazônicas está em regiões remotas ou sem aptidão agrícola. Ou seja, o número de áreas protegidas parece impressionante no powerpoint, mas não compete com o agronegócio.

O Brasil também não é nenhuma jabuticaba no quesito “área protegida” legalmente. Protegemos muita floresta porque temos a maior biodiversidade do mundo para resguardar. A Austrália tem 20% de seu território protegido. A França, 26%, o Japão e o Reino Unido, 29%, e a Alemanha, 38%. Entre os nossos vizinhos, Peru, Colômbia e Bolívia têm mais de 40% do território protegido.A média do mundo é 29% em unidades de conservação e territórios indígenas. A proporção de áreas protegidas no Brasil é não destoa da média.

O argumento de que as áreas protegidas e outras áreas legalmente designadas – para assentamentos de reforma agrária, por exemplo – são “improdutivas” é falacioso. Terras indígenas e unidades de conservação de uso sustentável desenvolvem agricultura, manejo florestal e extrativismo. Atire o primeiro pote de açaí quem acha que isso não é produção. Só a comercialização de produtos da floresta movimenta em torno de R$ 1,5 bilhão ao ano – e isso excluindo a indústria madeireira na Amazônia. Faltam políticas e investimentos para que nossas áreas protegidas gerem ainda mais renda e empregos. 

Cruzando os dados do MapBiomas com o mapa fundiário do Brasil compilado pelo projeto Atlas da Agropecuária Brasileira, conclui-se que as propriedades privadas (cadastradas no Incra ou com Cadastro Ambiental Rural, o CAR) possuem quase 190 milhões de hectares de vegetação nativa, ou cerca de um terço do total do país.

Imóveis privados podem exercer produção rural em toda a sua extensão, exceto nas áreas de preservação permanente, que protegem, especialmente, os cursos d'água e perfazem em média cerca de 10% da área da propriedade. Uma parcela da área que varia de 20% a 80%, dependendo do bioma, deve ser mantida com vegetação nativa na forma de reserva legal, sendo a produção limitada a atividades que não ponham a mata abaixo. 

A conservação das áreas florestais é bem diferente quando comparamos as áreas públicas e privadas. As propriedades privadas tiveram perda líquida de mais de 20% de sua cobertura florestal nos últimos 30 anos. Nas unidades de conservação e terras indígenas a perda foi de 0,5% e, em outras áreas públicas não protegidas, de 5%.  

Infelizmente, apesar da queda das taxas de desmatamento entre 2005 e 2012, o Brasil ainda é o país que mais desmata do planeta: em 50 anos, destruímos quase 20% da Amazônia, o equivalente a mais de dez vezes o território da Holanda e o da Bélgica somados. O cerrado, nosso segundo maior bioma, está reduzido à metade. O Pantanal perdeu 7% em 15 anos. O pampa, 13%. Restam menos de 15% da Mata Atlântica original. No caso amazônico, tanta devastação ocorreu à toa: Segundo os dados do projeto Terraclass, feito pela Embrapa e pelo Inpe, 63% da área desmatada é ocupada por pastos de baixíssima produtividade, com menos de um boi por hectare, e 23% foi abandonada e está em regeneração.

Não é verdade que precisamos desmatar mais para ampliar nossa produção. Graças ao uso intensivo de tecnologia, tivemos enormes ganhos de produtividade e evitamos maior desmatamento. De 1991 a 2017, a produção de grãos e oleaginosas subiu 312%, mas a área plantada cresceu apenas 61%. Em São Paulo, por exemplo, a área de cultivo agrícola dobrou desde 2000, crescendo essencialmente sobre as pastagens sem que o Estado diminuísse a produção pecuária. Sabe quem mais cresceu por lá? A Mata Atlântica. São Paulo hoje tem mais floresta, mais agricultura e mais boi.

Há espaço no Brasil para ampliar a produção e a conservação. Dizer o contrário é ofender o espírito empreendedor e competitivo do agricultor brasileiro. O Brasil tem tudo para ser o maior produtor mundial de alimentos e em bases sustentáveis. Para isso, podemos e devemos zerar o desmatamento, acabar com a ocupação ilegal de terras públicas, defender nossas áreas protegidas e aprofundar os ganhos de produtividade de nossa produção rural. É ganha-ganha.

Tasso Azevedo é coordenador técnico do Observatório do Clima e coordenador geral do MapBiomas

Luís Fernando Guedes Pinto é gerente de Certificação Agrícola do Imaflora (Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola)


Artigo de publica em O VALOR ECONOMICO em 13.02.2019

quarta-feira, 30 de janeiro de 2019

Por que esperar a tragédia?



Passado o calor dos acontecimentos do rompimento da barragem de Mariana em 2015, restou o doloroso e complexo processo de reparação às vitimas e recuperação dos danos ambientais e da economia, que segue em curso com muitos aprendizados e avanços, mas ainda com um longo caminho a ser percorrido.

De lá para cá, pouco foi feito para fortalecer o sistema de licenciamento, monitoramento, fiscalização e mitigação de risco de barragens e evitar outra tragédia. Ao contrário, nos últimos três anos, as tentativas de fortalecimento desta agenda foram sufocadas, desvirtuadas, esquecidas ou simplesmente ignoradas em nome de um discurso antigo e ambidestro, mas plenamente revigorado de caracterização do cuidado ambiental como um entrave do desenvolvimento. Esse discurso está embrenhado de forma quase orgânica no governo do presidente Bolsonaro, do próprio presidente à ministra da Agricultura, do ministro do Meio Ambiente ao chefe da Casa Civil.

Sob esta ótica, a forma de harmonizar meio ambiente e o chamado “setor produtivo” seria submeter o primeiro ao segundo. Licenciamento deveria ser expedito, pois é uma burocracia despropositada; a fiscalização precisa ser controlada para deixar de perseguir os produtores. Se uma autuação for revertida na Justiça, que seja punido quem cumpriu seu dever de fiscalizar. Já a sociedade civil, ao pressionar pelo controle ambiental, estaria atendendo a interesses internacionais e se locupletando de recursos públicos em detrimento da agenda de desenvolvimento econômico.

Infelizmente, foi preciso que mais uma tragédia acontecesse para que fosse acionado um freio de arrumação. A repetição da tragédia do rompimento de uma barragem, que nem ativa estava, escancarou a fragilidade dos sistemas de monitoramento e fiscalização e a debilidade dos sistemas de gestão de risco no país. Se acontece com uma das empresas mais estruturadas do país, que dirá nas outras centenas de casos com significativamente menos recursos?

O estrondoso “eu te disse” de especialistas e representantes da sociedade civil ecoa desde os processos de licenciamento onde foram votos vencidos até os debates da Assembleia Legislativa de Minas Gerais e no Congresso Nacional, onde as propostas de avanços para fortalecer a legislação foram arquivados.

Pode até ser que o rompimento da barragem seja um caso fortuito, mas a falha nos sistemas de monitoramento, alerta e alarme, entre tantos outros, é  fruto de problema sistêmico muito maior. Agora é hora de atender à emergência das vítimas de Brumadinho, mas, logo após, é fundamental enfrentar o problema de frente, fortalecendo o sistema de licenciamento e controle ambiental antes que a próxima tragédia recaia sobre nós.

Publicado em O GLOBO em 30.01.2019