Lembro-me de longas discussões em jantares de família onde nos perguntávamos o que haveria dentro do baú do vovô que ficava embaixo da escada. Ele sempre fazia mistério, dizia que eram coisas que foi guardando ao longo da vida. Só após sua morte é que o mistério foi desvendado. Recorte de jornal antigo, alguns livros, pequenos objetos, típicos elementos de sua memória. Ao recordar esse tempo nos dias atuais, penso como as "coisas do vovô", com quase 90 anos vividos, cabiam em um baú embaixo da escada. Minha filha tem 2 anos e acho que as coisas dela não cabem num armário inteiro.
Minha avó sabia que a cada 15 dias passava o amolador de facas que também sabia trocar a borracha da geladeira que ela reclamava que não durava nem dez anos (a geladeira tinha 50 anos). Hoje mesmo, em Pinheiros, bairro onde tudo se encontra em São Paulo, é raro encontrar alguém que concerte uma roupa, uma mala, amole uma faca ou qualquer outro serviço que ajude a prolongar a vida útil das coisas. Em seu lugar estão dezenas de lojas de R$1,99 que vendem tudo novo.
Estudo recente mostrou que a quantidade de lixo gerada no Brasil avança mais rapidamente que o crescimento da economia, ou seja, estamos mais ineficientes, gerando cada vez mais resíduos. Se somarmos o que não estamos descartando, mas estamos guardando no fundo dos armários, na garagem, no quintal ou até em depósitos pagos - é, esse serviço já existe - parece que estamos nos transformando numa fábrica de resíduos.
Um dos fatores determinantes para este quadro é um fenômeno conhecido como obsolescência planejada, que promove a redução deliberada da durabilidade ou funcionalidade de um bem ou produto. Ou seja, é planejar como tornar os bens e produtos obsoletos num prazo predeterminado. Esta prática totalmente disseminada no mundo empresarial é que faz com que os telefones celulares tenham vida média de um ano, impressoras parem de funcionar após um certo número de impressões, cartuchos de tinta sejam programados para não poderem ser recarregados, computadores se tornem cada vez mais lentos com o passar do tempo e o concerto de qualquer equipamento quase sempre seja menos vantajoso que comprar um novo.
A lógica por trás da obsolescência programada é a de criar um processo continuo de consumo que permitira sustentar o crescimento permanente da geração de produtos e serviços. Você compra um celular simples. A operadora oferece então um pacote gratuito de envio de algumas fotos para outros celulares. Você então compra um novo celular para aproveitar esta função e o novo aparelho permite acesso à internet, o que o leva a assinar o serviço de banda larga que oferece uma ampla possibilidade de recursos caso tenha um smartphone. Então você muda para um smartphone. Depois vem a videoconferência, o 3D e o ciclo nunca se encerra. A cada passo que você dá, o aparelho anterior fica obsoleto e provavelmente vai parar no fundo na gaveta (mas não no fundo da gaveta, porque este está cheio faz muito tempo). É um processo insustentável.
É preciso repensar o propósito e a forma como as empresas desenvolvem soluções, produtos e serviços. Produtos e serviços devem ser concebidos com design duradouro e construídos de forma modular de forma que possam ser reparados, atualizados e renovados por partes. É preciso que as peças de reposição - inclusive softwares e aplicativos - estejam disponíveis a longo prazo, no site do próprio fabricante ou desenvolvedor e com preços deliberadamente atrativos para que os reparos sejam feitos.
Alguns aspectos deveriam mesmo merecer uma regulação específica (por exemplo, impedir a venda de suprimentos deliberadamente programados para não serem reutilizados, como certos cartucho, de impressora), mas o melhor seria as próprias empresas tomarem a iniciativa de rever suas práticas, pois é o dia a dia de seus negócios - mais do que qualquer outra iniciativa - que se contribui para a Sustentabilidade.
É hora de trocar a obsolescência planejada pelo feito-pra-vida-toda.
Publicado no Jornal O Globo em 20/07/2011
Minha avó sabia que a cada 15 dias passava o amolador de facas que também sabia trocar a borracha da geladeira que ela reclamava que não durava nem dez anos (a geladeira tinha 50 anos). Hoje mesmo, em Pinheiros, bairro onde tudo se encontra em São Paulo, é raro encontrar alguém que concerte uma roupa, uma mala, amole uma faca ou qualquer outro serviço que ajude a prolongar a vida útil das coisas. Em seu lugar estão dezenas de lojas de R$1,99 que vendem tudo novo.
Estudo recente mostrou que a quantidade de lixo gerada no Brasil avança mais rapidamente que o crescimento da economia, ou seja, estamos mais ineficientes, gerando cada vez mais resíduos. Se somarmos o que não estamos descartando, mas estamos guardando no fundo dos armários, na garagem, no quintal ou até em depósitos pagos - é, esse serviço já existe - parece que estamos nos transformando numa fábrica de resíduos.
Um dos fatores determinantes para este quadro é um fenômeno conhecido como obsolescência planejada, que promove a redução deliberada da durabilidade ou funcionalidade de um bem ou produto. Ou seja, é planejar como tornar os bens e produtos obsoletos num prazo predeterminado. Esta prática totalmente disseminada no mundo empresarial é que faz com que os telefones celulares tenham vida média de um ano, impressoras parem de funcionar após um certo número de impressões, cartuchos de tinta sejam programados para não poderem ser recarregados, computadores se tornem cada vez mais lentos com o passar do tempo e o concerto de qualquer equipamento quase sempre seja menos vantajoso que comprar um novo.
A lógica por trás da obsolescência programada é a de criar um processo continuo de consumo que permitira sustentar o crescimento permanente da geração de produtos e serviços. Você compra um celular simples. A operadora oferece então um pacote gratuito de envio de algumas fotos para outros celulares. Você então compra um novo celular para aproveitar esta função e o novo aparelho permite acesso à internet, o que o leva a assinar o serviço de banda larga que oferece uma ampla possibilidade de recursos caso tenha um smartphone. Então você muda para um smartphone. Depois vem a videoconferência, o 3D e o ciclo nunca se encerra. A cada passo que você dá, o aparelho anterior fica obsoleto e provavelmente vai parar no fundo na gaveta (mas não no fundo da gaveta, porque este está cheio faz muito tempo). É um processo insustentável.
É preciso repensar o propósito e a forma como as empresas desenvolvem soluções, produtos e serviços. Produtos e serviços devem ser concebidos com design duradouro e construídos de forma modular de forma que possam ser reparados, atualizados e renovados por partes. É preciso que as peças de reposição - inclusive softwares e aplicativos - estejam disponíveis a longo prazo, no site do próprio fabricante ou desenvolvedor e com preços deliberadamente atrativos para que os reparos sejam feitos.
Alguns aspectos deveriam mesmo merecer uma regulação específica (por exemplo, impedir a venda de suprimentos deliberadamente programados para não serem reutilizados, como certos cartucho, de impressora), mas o melhor seria as próprias empresas tomarem a iniciativa de rever suas práticas, pois é o dia a dia de seus negócios - mais do que qualquer outra iniciativa - que se contribui para a Sustentabilidade.
É hora de trocar a obsolescência planejada pelo feito-pra-vida-toda.
Publicado no Jornal O Globo em 20/07/2011