domingo, 3 de outubro de 2021

Cadê a floresta que estava aqui? (O gado comeu)




Na região da Amazônia que virou fonte de carbono e pôs a ciência em pânico, rodamos pelas estradas em busca de algum mato para contar a história

por: Claudio Ângelo e Tasso Azevedo

O rio Tapajós definitivamente não convidava a um mergulho naquela manhã de sábado. Famoso no passado por suas águas azuis, o afluente do Amazonas se apresentava num verde leitoso esquisito na altura da cidade de Itaituba, oeste do Pará. Ninguém sabe ainda o que causou a mudança da cor do rio neste ano: as apostas vão da proliferação de algas microscópicas à lama dos garimpos que arrasam seus afluentes a montante da “cidade-pepita”, a capital paraense do ouro. Na balsa que cruza para o distrito de Miritituba, na margem direita, mais um elemento que definitivamente não parece estar ajudando a limpar o rio apareceu.

“Olhem só, de vez em quando aqui na balsa passam umas fagulhas”, observou nosso motorista, Carlos Alberto Noronha, o Carlão, enquanto flocos semelhantes a uma nevada leve caíam sobre o para-brisa do carro. “Os portos graneleiros aqui do lado estão despejando soja nas barcaças, e o vento levanta a poeira da soja.” Transtorno para os moradores, que não conseguem pendurar roupas para secar fora de suas casas na época da safra, e mais uma carga de sujeira jogada no Tapajós.

Miritituba se tornou na última década um símbolo das transformações aceleradas que o oeste paraense vem sofrendo. O distrito hoje conta com meia dúzia de estações de transbordo de cargas (ETCs), terminais onde centenas de caminhões descarregam diuturnamente soja e milho colhidos em Mato Grosso (e hoje também no Pará), que serão enviados em barcaças até os portos de Santarém, Barcarena e Santana (esta última no Amapá), depois transferidos a navios e exportados, em sua maior parte para a China.

Com a pavimentação da rodovia BR-163, a Cuiabá-Santarém, anunciada em 2002 e concluída apenas em 2020, o agronegócio de Mato Grosso ganhou uma rota de escoamento diretamente para o chamado Arco Norte do país, mais próximo dos mercados consumidores e a uma distância menor dos centros de produção do que os portos do sul, como Paranaguá. A rodovia passou a enfrentar congestionamentos de carretas na época da safra, e postos de combustível com capacidade para 500 caminhões cada um foram construídos no chamado Km 30, a intersecção entre a 163 e a Transamazônica. Caminhoneiros chegam a esperar dias nos pátios desses megapostos para descarregar em Miritituba.

Mas a principal atingida pela rodovia e a consequente expansão do agronegócio pelo oeste paraense foi a floresta amazônica. O surto de grilagem que se seguiu ao anúncio do asfaltamento fez o desmatamento na região explodir. No começo do século, a devastação ao longo da 163 fez um “dente” no chamado Arco do Desmatamento, a meia-lua sinistra da destruição que avançava Amazônia adentro desde o Maranhão, passando por Tocantins, Mato Grosso, sul do Pará, Rondônia e Acre. Foi também um dos fatores responsáveis pelo desmatamento brutal de quase 28 mil quilômetros quadrados visto em 2004.

O governo Lula tentou conter o surto de desmatamento interditando a área em torno da BR para criar um plano de ordenamento territorial, o “BR-163 Sustentável”. Este incluía a criação de um mosaico de unidades de conservação no entorno da rodovia, como a Floresta Nacional e o Parque Nacional do Jamanxim, a Floresta Nacional de Trairão e o Parque Nacional do Rio Novo. A ideia era que as novas áreas protegidas, mais as já existentes e as terras indígenas, formassem uma “muralha” que protegesse a floresta. Também foi planejada a criação de um distrito florestal sustentável na BR-163, no qual empresas de exploração madeireira pudessem disputar concessões de Florestas Nacionais para fazer manejo sustentável – trazendo dinheiro, empregos e concorrendo com a madeira ilegal.

Embora as teses estivessem corretas e as áreas protegidas de fato sejam um entrave à devastação, faltou Estado nos anos seguintes para implementar o plano. Hoje a região sudoeste do Pará – municípios como Trairão, Novo Progresso e o distrito de Castelo dos Sonhos, em Altamira – ainda está entre os pontos mais quentes de desmatamento. Ali aconteceram, por exemplo, as duas maiores operações de combate à destruição da última década, a Castanheira (2015) e a Rios Voadores (2016), que levaram à prisão os maiores desmatadores do país, Ezequiel Castanha e Antônio “Jotinha” Junqueira Vilela Filho.

As unidades de conservação criadas em 2006 vêm sendo invadidas e desmatadas. O maior exemplo é a Floresta Nacional do Jamanxim, acessível por uma avenida de Novo Progresso. É a área protegida mais invadida e destruída da Amazônia. E pelo menos dois terços das invasões ocorreram após a criação da Flona.

O governo Bolsonaro virou de vez o clima na região ao desmontar os órgãos de controle ambiental e, mais do que isso, empoderar os criminosos com seus discursos. Se grilar, desmatar e garimpar eram vistos antes como um fato da vida e depois como atividades sujeitas a punição, hoje elas são motivos de orgulho – e quem diz o contrário é um inimigo a ser erradicado. Os municípios que mais desmataram a Amazônia elegeram Jair em primeiro turno e lhe permanecem fiéis. Em Novo Progresso é difícil encontrar um comércio, um carro ou uma porteira de fazenda que não sejam adornados com uma bandeira do Brasil, o símbolo capturado pelo regime. Foi em Novo Progresso que fazendeiros se uniram em agosto de 2019 para fazer o infame “Dia do Fogo” e “mostrar serviço ao presidente”.

O MapBiomas Alerta detectou neste ano na região de Castelo dos Sonhos a maior derrubada contínua de floresta na Amazônia: 6.500 hectares de terras públicas destruídos entre fevereiro de 2020 e agosto de 2021. Tentamos chegar de carro até o local, mas fomos impedidos. A estrada que dava acesso à área desmatada começava numa fazenda às margens da BR-163, mas fomos informados de que só seria possível entrar com autorização do dono do imóvel – que, segundo informou a mulher que nos vedou a entrada, estava em Novo Progresso, sem previsão de retorno.

Em 2021 a região voltou a causar pânico entre os observadores da Amazônia. Um estudo liderado pela pesquisadora do Inpe Luciana Gatti e publicado na revista científica Nature mostrava que duas grandes áreas da Amazônia, a de Santarém e a de Alta Floresta, que inclui o trecho paraense da 163, já emitem mais gás carbônico do que absorvem. Isso se deve aos efeitos combinados das queimadas e da mudança do clima. Na região de Alta Floresta as temperaturas médias subiram 2,5oC desde 1979. Isso implica no aumento da mortalidade de árvores, que pode significar o colapso da floresta e um agravamento ainda maior do aquecimento da Terra.

No começo de setembro, nós descemos a BR-163 de carro desde Santarém até Castelo dos Sonhos, retornando pela Transamazônica até Altamira. Estávamos em busca de floresta, o que, à beira da estrada, hoje é artigo raro. A partir de hoje, o Instagram do OC publica uma série de vídeos sobre a viagem. Em todo o trajeto de 850 km entre Santarém e Castelo dos Sonhos, o único trecho hoje cercado de floresta de ambos os lados é a breve travessia do Parque Nacional do Jamanxim.

Onde falta mata sobra soja. Vimos grandes áreas de antigas pastagens sendo convertidas para agricultura. E vimos desmatamentos recentes sendo queimados para a apropriação ilegal e a pecuária. Se essas áreas novas de gado serão convertidas para soja – ou se existe desmatamento novo para soja – ainda é uma incógnita; em tese, a moratória em vigor desde 2006 veda o cultivo da oleaginosa em áreas recentemente desmatadas. Mas a pressão, seja ela direta ou indireta, da agricultura sobre as florestas remanescentes do Pará ficou clara em nosso trajeto.

Isso para não falar no garimpo. O preço do ouro disparou no mundo com a pandemia e cidades como Itaituba, Novo Progresso estão em plena febre do metal. Em Itaituba não se encontra vaga em hotel. Em Novo Progresso uma pizza chega a custar R$ 130. Vimos igarapés completamente alterados por lama de garimpo e uma balsa de extração ilegal no Parque do Jamanxim, a menos de 1 km da BR-163. Em lojas da cidade há verdadeiros estacionamentos de pás carregadeiras (PCs), máquinas de centenas de milhares de reais utilizadas para escavar os rios em busca do metal. “O ouro está com um preço tão alto que o Ibama queima uma e o garimpeiro pede outra”, contou-nos um local.

A mineração está arrasando os rios da região e colocando pressão sobre terras indígenas. O caso mais emblemático é o dos munduruku, da região de Itaituba, assediados e divididos pelos garimpeiros apoiados pelo governo Bolsonaro. Mas a extração ilegal de ouro também é acelerada na Terra Indígena Baú, dos kayapó. Na terra vizinha, a Mekrãgnoti, os indígenas realizam eles mesmos o monitoramento das fronteiras para evitar a entrada de garimpeiros e outros criminosos – com recursos da compensação da BR-163, cortados pela Funai em 2019.

À exceção do território dos kayapó, o único lugar onde entramos em florestas inteiras foi, por incrível que pareça, uma madeireira. Na Floresta Nacional de Altamira, a cerca de 80 km de Moraes de Almeida, distrito de Itaituba, funcionam duas concessões do Serviço Florestal Brasileiro para empresas que fazem corte seletivo em bases sustentáveis (dividindo a área em talhões e deixando a floresta se regenerar após a exploração). Na Flona, o desmatamento vai até a divisa da área de exploração que visitamos, da empresa RRX Florestal. Dentro da unidade de exploração a floresta segue de pé, vigiada pelos madeireiros.

Diante da ausência do Estado, ou de sua presença estimulando o crime e atrapalhando a fiscalização, são povos indígenas, ambientalistas, funcionários públicos entrincheirados no Ibama e no ICMBio e uns poucos empresários que cuidam, do jeito que podem, de manter vivos os últimos grandes blocos de floresta daquela parte do bioma. É do sucesso desses atores que depende o futuro dessa região, um dos principais fronts da batalha pela salvação do clima da Terra.

Veja os vídeos no Instagram: @observatoriodoclima


quinta-feira, 22 de abril de 2021

Dez medidas contra o desmatamento que só dependem do presidente


 
Esta semana acontece a Cúpula de Líderes sobre o Clima convocada pelo presidente dos EUA, Joe Biden. O presidente Bolsonaro e seu ministro Ricardo Salles vêm condicionando os compromissos do Brasil com a agenda climática ao recebimento de bilhões de dólares. 

O Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa do planeta, especialmente por causa do desmatamento, que responde por quase metade de nossas emissões. A derrubada da mata explodiu no governo Bolsonaro, ao mesmo tempo em que se desmonta todo o aparato de proteção das florestas. 

Agora o governo pede à comunidade internacional que coloque na mesa US$ 1 bilhão de dólares ao ano, sem o qual não pode reduzir a derrubada da floresta. Então, listamos aqui 10 medidas que o governo pode tomar imediatamente, na base do “parecer-caneta", que têm o potencial de colocar um freio de arrumação na devastação em curso. E, ao mesmo tempo, demonstrar à comunidade internacional que fala sério em proteger as florestas e as populações indígenas e comunidades tradicionais:

1) Retomar imediatamente o Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia (PPCDAM), que já se provou muito eficaz, derrubando o desmatamento mais de 80% entre 2005 e 2012, e que foi mantido até 2018.

2) Retomar a demarcação das terras indígenas, que está paralisada desde que Bolsonaro tomou posse. É sabidamente um dos meios mais efetivos de proteger a floresta.

3) Destinar 10 milhões de hectares de florestas públicas hoje abertas à grilagem para criação de unidades de conservação. Paralisar todos os processos de revisão de limites de unidades de conservação.

4) Embargo imediato e automático das áreas desmatadas ilegalmente, inclusive fora do Cadastro Ambiental Rural, por edital e mapa de áreas embargadas por município. Já existem mais de 100 mil laudos de desmatamento na plataforma MapBiomas prontos para esta ação.

5) Recomposição do orçamento e autonomia do Ibama, desistir da extinção-fusão do ICMBio e revogar a Instrução Normativa 01/2021, que paralisou a fiscalização ao tornar obrigatória a anuência de superior hierárquico para a ação dos fiscais na autuação, multa e embargo de áreas desmatadas ilegalmente.

6) Bloquear todos os Cadastros de Imóveis Rurais sobre terras públicas federais e estaduais.

7) Cancelar todos os processos de regularização fundiária de áreas desmatadas ilegalmente após julho de 2008.

8) Tornar obrigatória a inclusão do código do CAR da propriedade de origem na Guia de Transporte Animal (GTA), possibilitando a completa rastreabilidade da origem da carne no Brasil.

9) Vetar o acesso ao crédito rural para quem desmatou ilegalmente depois de julho de 2008 em todos os biomas brasileiros.

10) Retirar as iniciativas legislativas que premiam quem desmatou ilegalmente (PLs de Regularização Fundiária 2.633/2020, na Câmara, e 510/2021, no Senado) após julho de 2008 e que fragilizam o licenciamento ambiental (PL 3.729/2004).

Já esta mais do que na hora de mostrar serviço!

Tasso Azevedo e Andre Lima

publicado em O Globo em 22.04.2021

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Emissão zero é o novo normal


Pelo segundo ano consecutivo, o Relatório de Riscos Globais preparado pelo Fórum Econômico Mundial aponta temas ambientais como os maiores riscos à Humanidade. E os extremos climáticos e o insucesso com ações de combate às mudanças climáticas são destacados como riscos maiores inclusive que pandemias de doenças infecciosas, ataques cibernéticos ou terrorismo.


É significativo que o relatório seja compilado a partir de uma extensa pesquisa com líderes empresariais e formadores de opinião em todo o mundo. Paulatinamente, entre 2015 e 2020 a agenda climática foi tomando espaço na análise de risco global, turbinada pelos movimentos da sociedade civil — em especial da juventude — em todo o mundo, pressionando por compromissos e ações imediatos.


Parece que a ficha caiu sobre a gravidade da situação e a necessidade de nos movermos rapidamente enquanto ainda existem enormes oportunidades, em vez de se mover no futuro, quando será pura dor.


Neste contexto, já não é mais suficiente se comprometer em monitorar e se tornar mais eficiente nas emissões por quantidade de produtos ou faturamento. Nem se comprometer em apenas reduzir as emissões absolutas.


A conta é simples. Segundo o IPCC, o mundo pode emitir 770 GtCO2e (bilhões de toneladas de CO2 equivalente) até o fim do século para ter cerca de 50% de chance de limitar o aquecimento global a 1,5 grau, conforme previsto no Acordo de Paris. Hoje emitimos entre 55-60 Gt por ano e, neste ritmo, bem antes da metade do século teremos consumido o "orçamento de emissões". Por isso, todos os cenários de modelos climáticos compatíveis com 1,5 grau apontam a necessidade de termos emissões líquidas abaixo de zero na segunda metade do século.


Dezenove das 20 maiores corporações globais — excluindo a Saudi Aramco (gigante estatal do petróleo) — possuem políticas e compromissos de emissões neutras nas próximas décadas. Varia o escopo (se são emissões diretas ou indiretas), o meio de neutralização (se zerando emissões ou compensando com ações ou compra de créditos de carbono) e os prazos. Mas todos no mesmo sentido — zerar sua contribuição para acúmulo de gases de efeito estufa na atmosfera.


O mesmo se passa agora com os países ao proporem seus compromissos frente ao Acordo de Paris. Apenas anunciar um esforço de redução relativa não funciona mais. Especialmente dos países desenvolvidos, se espera nada menos que a definição de quanto antes de 2050 da neutralização das emissões na escala nacional.


Como consequência, outros zeros estão se tornando normais, como zerar o consumo de combustíveis fósseis e seus derivados e zerar o desmatamento e a degradação do solo.


Este novo normal é o maior direcionador de um movimento sem precedentes de investimento em todas as tecnologias, inovações, modelos de negócio e transformações necessárias para gerar uma sociedade próspera a partir de uma economia independente de emissões.


Se você ainda não percebeu esse novo normal, corra para não ser atropelado pela história.


Publicado em O Globo em 03.02.2021

quarta-feira, 25 de novembro de 2020

País que mais preserva ou destrói?


Dias atrás,  discursando para o G20,  o presidente Bolsonaro afirmou: "Utilizamos 8% de nossas terras para agricultura e 19% para pecuária; por isso, cerca de 66% de nosso território se encontram preservados com vegetação nativa (...) trabalharemos para manter este elevado nível de preservação. Somos responsáveis por menos de 3% das emissões de carbono mesmo sendo uma das dez maiores economias do mundo". E completou assim: "o que apresento aqui são fatos e não narrativas, são dados concretos e não frases demagógicas que rebaixam o debate publico".


Depois de tantas informações erradas propaladas pelo atual chefe do Executivo,  chega a surpreender que os quatro dados apresentados na fala sejam muito próximos do real. Mas as conclusões derivadas deles contidas na fala não condizem com a realidade.


Segundo o MapBiomas, a mais completa base de dados sobre cobertura e uso da terra do país, em 2019 a área de uso agropecuário ocupava cerca de  30% do território. Quando  se consideram as pastagens naturais e os plantios comerciais para produção de madeira,  chega a 35%, o que está alinhado com a média global de ocupação da superfície terrestre para agropecuária. O Brasil não se distingue muito do mundo neste quesito.


Ainda segundo o MapBiomas, o país tem realmente 66% de vegetação nativa. Porém não se pode dizer que preserva este montante. Quase 10% da vegetação nativa brasileira já foram  desmatados pelo menos uma vez, e estima-se que pelo menos outros 20% já foram degradados pelo fogo ou pela exploração ilegal de madeira. Ou seja, a área efetivamente preservada não alcança nem 50%.


Por outro, lado o Brasil é, de longe, o país que mais desmata no mundo. Lá atrás vêm a República Democrática do Congo e a Indonésia. E o desmatamento anda muito rápido. Em 1975 a Amazônia tinha 0,5% de suas florestas desmatada, atualmente se aproxima de 20%. Entre janeiro de 2019 e agosto de 2020 o desmatamento no Brasil alcançou uma área superior à metade do Estado do Rio de Janeiro. Definitivamente, o Brasil não é o país que mais preserva no mundo.


O Brasil é o quinto maior emissor de gases de efeito estufa. Em 2019 fomos responsáveis por cerca de 4% das emissões globais, enquanto nossa participação no PIB global é 2%, ou seja, emitimos mais que a média do mundo para cada dólar  de geração de riqueza. Por outro lado, nossa emissão per capita é de 10 tCO2e/habitante/ano, enquanto a média do mundo é 7t. Novamente, estamos piorando a média do mundo.


Mas o Brasil, que tem alta participação de fontes renováveis na matriz energética, poderia se tornar rapidamente o exemplo para o mundo. Zerando o desmatamento, restaurando ecossistemas em áreas críticas, ampliando as áreas protegidas e a economia da floresta em pé junto com uma pujante agricultura regenerativa, seremos certamente o melhor exemplo para o mundo.


Para isso precisamos de menos demagogia e desvio de atenção do discurso e mais ação no dever de casa.


Publicado em O Globo em 25.11.2020

quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Do básico ao desruptivo

 


Setembro foi o mês mais quente no planeta desde que os registros começaram em escala global,  em 1979.  A temperatura média global já subiu 1oC acima da média do século passado,  e o número de eventos climáticos extremos  triplicou nas últimas quatro décadas.


Para  que o aquecimento global não ultrapasse os 1,5oC,  os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) estimam que o mundo precisa emitir no máximo 770 GtCO2e (bilhões de toneladas de CO2 equivalente) de gases de efeito estufa na atmosfera (GEE) até o fim do século. As emissões anuais se aproximaram em 2019 das 60 GtCO2e e,  neste ritmo,  teremos consumido todo o nosso orçamento de emissões antes de 2040.

Esta situação não nos deixa muitas saídas. Temos que reduzir drasticamente as emissões e aumentar muito as remoções para obter as chamadas emissões negativas na segunda metade do século. Ou seja, precisamos retirar mais carbono da atmosfera do que emitimos.


Para uma parte importante do problema,  como a geração de energia por fontes renováveis, o fim do desmatamento e a ampliação do reflorestamento e da restauração de solos são hoje menos uma dificuldade tecnológica e mais político-econômica. Mas existem fontes de emissão que precisam de muita inovação disruptiva,  como a produção de aço e cimento.


Veja o caso do cimento: para transformar o calcário (CaCO3) em cal (CaO) — matéria-prima do cimento —, é preciso retirar uma molécula de carbono e outras duas de oxigênio. Isso é feito aquecendo o calcário,  e o resultado é a emissão de uma molécula de CO2 para cada uma de cal produzida. Os esforços para reduzir emissões se concentravam até recentemente na diminuição da quantidade de cal necessária para produzir o cimento ou o concreto, no uso de energia de fontes renováveis no processo e na tentativa de substituir a cal por outro material.


Mas recentemente a Solidia, uma startup americana, desenvolveu uma tecnologia para curar o cimento com CO2,  em vez de água. O resultado dos testes já realizados em escala mostra que o cimento cura 90% mais rápido e se torna mais resistente e durável, capturando o equivalente 70% do carbono emitido na produção do cimento. Com alguns avanços adicionais relacionados à formulação química do CO2 capturado para usar na cura do cimento (exemplo,  ácido cítrico),  será possível tornar as emissões do procedimento negativas.


Nesta próxima década precisamos reverter a curva de emissões e temos que  fazer de tudo, do básico ao mais disruptivo, para prosperar num mundo mais fresco e saudável. Não há tempo a perder.


Publicado em O Globo - 28.10.2020

quarta-feira, 30 de setembro de 2020

Eletrificar pra Valer



Para limitarmos o aumento da temperatura global em 1,5 grau,  é preciso eliminar o desmatamento, multiplicar a agricultura de baixo carbono e, principalmente, reduzir ao mínimo a queima de combustíveis fósseis,  que respondem por dois terços das emissões globais de gases de efeito estufa.

Para conseguir eliminar a queima de combustíveis fósseis,  é necessário eletrificar a economia. Este é o jeito mais fácil de gerar e transportar energia renovável e limpa. O sol e o vento,  que são fontes quase inesgotáveis de energia,  já são mais baratos que as fontes de energia fósseis em quase todos os países.

Hoje,  apenas 20% da demanda energética do mundo se dão por meio de eletricidade. Esse número precisaria duplicar ou triplicar em três décadas. Para atingir esta meta,  será necessário converter quase toda a frota de transporte do mundo, hoje baseada em motores a combustão, para veículos elétricos (VEs). Os VEs já se provaram muito melhores em termos de segurança, performance, torque, conforto e custo de manutenção. Até mesmo a autonomia das baterias já se aproxima e,  em alguns casos,  supera aquela dos veículos tradicionais a combustão. O grande gargalo para sua produção  é o alto custo das baterias.

A frota em circulação de EV’s saltou de 17 mil em 2010   para 7,2 milhões em 2019,  com vendas anuais chegando a 2,1 milhões (2,6% do mercado). Nesse período, o custo das baterias caiu de US$ 1.200 para US$ 150/KWh,  e a densidade de energia subiu de 200 para 300 Wh/kg,  o que aproximou o valor de EVs aos veículos similares a combustão em várias regiões.
As projeções mostram que se as baterias atingirem o valor de US$ 100/KWh,  com densidade acima de 300 Wh/kg,  praticamente qualquer EV seria tão vantajoso economicamente que decretaria a morte dos veículos a combustão.

Para se atingir este limite, será necessário dar um ganho de escala da produção — saindo do nível de GW para TW de produção anual  com transformações disruptivas em toda a cadeia.
Há  poucos dias,  Elon Musk —  o excêntrico empreendor da SpaceX, Neuralink e Tesla —  apresentou na reunião anual de acionistas da Tesla um roadmap de cinco  anos para cortar pela metade os custos de produção de baterias,  ao mesmo tempo em que permite multiplicar a capacidade de produção mundial mais de cem  vezes até 2030.

Isso permitiria ao mundo não só transformar toda a frota global de novos veículos (carros, motos, caminhões e ônibus) em EV, mas agregar sistemas de armazenamento ao grid do sistema elétrico para estabilizar as fontes intermitentes, como solar e eólico.

Dado o passado de propostas ousadas feitas por Elon Musk ao longo dos últimos 15 anos (e executadas!),  como a reutilização de foguetes de lançamento espacial e construção de gigafábricas operando 100% em energias renováveis, é o prenuncio de que,  pelo menos nesta frente,  temos uma chance real de virar o jogo em uma década.

Publicado em O Globo em 30.09.2020

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Não falta monitoramento, falta ação


Agosto terminou, e o ritmo dos incêndios na Amazônia não arrefeceu, continua nos mesmos níveis de 2019, os mais altos da última década. O desmatamento se mantém acelerado. Embora com pequena queda em julho em relação a 2019, continuou tendo um dos maiores valores desde o início da implantação do sistema de detecção mensal em 2004. Os números mostram que a estratégia do emprego das Forças Armadas para coordenar o combate ao desmatamento e aos incêndios na Amazônia não está funcionando.

Confrontadas com a realidade, as autoridades federais, como o vice-presidente da República, Hamilton Mourão, na qualidade de presidente da Comissão da Amazônia, costumam argumentar que faltam informações estratégicas para agir e que não há como identificar e punir os infratores.


Num cenário de completa falta de recursos, o Ministério da Defesa abriu um processo para aquisição – sem licitação – de um microssatélite para monitorar a Amazônia por R$ 145 milhões, mais do que o dobro do orçamento do Ibama para combate aos ilícitos ambientais e quase 20 vezes mais caro que o Prodes e o Deter, dois programas de monitoramento do desmatamento desenvolvidos pelo Inpe e que são benchmark no mundo.


A ideia de que faltariam instrumentos de monitoramento do desmatamento e degradação na Amazônia simplesmente não faz sentido. A Amazônia Brasileira é de longe o bioma mais monitorado em toda a região tropical. São pelo menos cinco sistemas de detecção de desmatamento em operação. Além do Deter/Inpe, com dados semanais (e até diários, no caso do Ibama) de desmatamento e degradação, existe ainda o SAD, desenvolvido pelo Imazon com dados mensais; o GLAD, da Universidade de Maryland, que publica dados diariamente; o Sirad-X, do Instituto Socioambiental, que monitora com imagens de radar o desmatamento na Bacia do Rio Xingu; e o Sipamsar, desenvolvido pelo Ministério da Defesa com sistema de radar que opera em regiões específicas no período chuvoso. Todos, exceto justamente o sistema do Ministério da Defesa, produzem informações públicas e abertas.


Além destes sistemas, existem ferramentas complementares para apoiar a priorização das áreas de fiscalização, como o Deter-Intenso do Inpe, e a identificação remota dos infratores, como o MapBiomas Alerta, que faz a validação e o refinamento de todos os alertas públicos de desmatamento gerados e os transforma em laudos customizados pelos usuários para verificar se um desmatamento é ilegal e identificar os responsáveis.


Claramente não nos falta monitoramento. Entre 2004 e 2012, quando o desmatamento caiu 80%, só existiam o Deter (lançado em 2004), com resolução mais baixa e menor frequência, e o SAD, lançado em 2005.


Por que agora não conseguimos baixar o desmatamento? Porque o monitoramento não está se convertendo em ações no campo ou remotas. Enquanto o desmatamento cresce e aprendemos que 99% têm fortes indícios de ilegalidade, como apontou o MapBiomas, o ano de 2020 tem o menor número de multas aplicadas pelo Ibama em 21 anos. A operação Controle Remoto — que promove a autuação à distância utilizando os dados do Cadastro Ambiental Rural — foi paralisada por completo em 2019.


General Mourão, faça o básico, retome a estratégia de sucesso do PPCDAM – Plano de Prevenção e Combate ao Desmatamento na Amazônia. O governo tem técnicos e expertise para reverter a curva do desmatamento. Use sua influência para garantir recursos financeiros, apoio logístico e a contratação de mais fiscais e dê autonomia para o Ibama e o ICMBio coordenarem as operações. Você colherá os resultados muito antes do que imagina.


Publicado em O Globo em 02.09.2020