quarta-feira, 25 de abril de 2012

Como fazer algo ruim ficar pior. Muito pior.


Em seu relatório para a segunda fase de tramitação na Câmara, o deputado Paulo Piau propôs 21 alterações que retiram todas as salvaguardas mínimas colocadas no Senado. É desolador. Se este texto for aprovado, mesmo que parcialmente, não resta alternativa à Presidente Dilma senão o veto total do projeto sob pena de corroborar com o maior retrocesso em relação ao desenvolvimento sustentável no Brasil. Neste artigo, analisamos o impacto da proposta do deputado na proteção das florestas

A proposta de alteração do Código Florestal que tramita no Congresso, quando aprovado na Câmara dos Deputados era trágico, no Senado foi aprimorado com algumas salvaguardas, mas em essência continua com os problemas centrais: 

- amplia as possibilidades de desmatamento, 
- diminui a proteção e áreas sensíveis como os mangues e matas ciliares, 
- anistia desmatadores ilegais, 
- permite consolidação sem recuperação das áreas degradadas ou, nos poucos casos que exige recuperação, trata-se de área significativamente menor que a área afetada ilegalmente. 

Apesar de todos os problemas, a tramitação no Senado conseguiu incorporar alguns elementos importantes como o artigo que define os princípios e objetivos da Lei, ou seja, os propósitos que devem nortear sua aplicação e interpretação. Isso é fundamental numa lei que exigirá muita interpretação. Outros exemplos de elemento importante adicionado pelo Senado foram: 
- a definição de área mínima de APP a ser recuperada, 
- o tratamento diferenciado com relação a benefícios e incentivos para quem já cumpre a legislação atual e 
- a possibilidade do poder executivo estabelecer critérios diferenciados para recomposição florestal em bacias hidrográficas críticas, como, por exemplo, aquelas com menos de 20% de sua cobertura vegetal original. 

Ao retornar à Câmara, o projeto foi entregue para a relatoria do Deputado Paulo Piau (PMDB/MG), autor de boa parte das emendas mais polêmicas ao projeto durante a primeira tramitação na Câmara. Em seu relatório para a segunda fase de tramitação na Câmara, na semana passada, o deputado propôs 21 alterações que retiram todas as salvaguardas mínimas colocadas no Senado. É desolador. Se aprovado este relatório, mesmo que parcialmente, não resta alternativa à Presidente Dilma senão o veto total do projeto sob pena de corroborar com o maior retrocesso em relação ao desenvolvimento sustentável no Brasil. 

O Código Florestal pode e merece ser revisto. As alterações e aprimoramentos que o código recebeu ao longo dos anos tornou o texto muito complexo. Apesar disso, o atual código florestal tem sido fundamental para embasar as ações que levaram à queda de mais de 70% do desmatamento na Amazônia nos últimos sete anos. A revisão do código florestal deve ocorrer num contexto que torne mais eficiente a proteção, a conservação e o uso sustentável das florestas e incorporar o conhecimento técnico e científico acumulado ao longo das últimas décadas. 

Em vez disso, a proposta de revisão do código florestal praticamente ignora as recomendações técnicas e científicas extensamente expressas nos pareceres da Academia Brasileira de Ciência (ABC) e da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), promove a redução significativa da proteção das florestas e foca nos interesses das atividades agropecuárias (atividades que já contam com política específica: a Política Agrícola instituída pela Lei 8171/1991). 

É fundamental que este processo seja freado e um processo real de concertação nacional seja estabelecido para compor uma proposta de Código Florestal que garanta a proteção das florestas. 

Aqui, analisamos as alterações propostas no Relatório do Deputado Paulo Piau e o seu impacto na proteção das florestas: 

1. O relator rejeita o artigo primeiro do texto aprovado pelo Senado que apesar de ser apenas principiológico (não estabelece obrigações), define uma série de princípios que caracterizam o código florestal como uma lei ambiental. Ao rejeitar esse dispositivo, o relator reforça a tese de que o Congresso está transformando o código florestal em uma lei de consolidação de atividades agropecuárias ilegais, ou em uma lei de anistia. 

2. O relator resgata o conceito original, incerto e genérico (da versão da Câmara) de pousio (art.3º XI). Na prática, essa alteração significa a consolidação de desmatamentos ilegais posteriores a 2008 que serão caracterizados como áreas em pousio e vai permitir, ainda, novos desmatamentos legais em propriedades com áreas abandonadas, o que hoje é vedado pela Lei vigente. 

3. O novo relatório propõe, ainda, - o que é coerente com a alteração referida no item 2 -, a exclusão do conceito de áreas abandonadas ou subutilizadas previsto no artigo 3º, inciso XX, do texto do Senado. Isso pode comprometer o próprio Programa ABC (Agricultura de Baixo Carbono), cujo objetivo é criar incentivos à redução de emissões do setor agropecuário mediante o resgate dessas áreas para a produção. Cai um instrumento legal de pressão por recuperação e otimização produtiva de áreas hoje subutilizadas ou abandonadas na medida que poderão ser abertas novas áreas de vegetação nativa nessas propriedades. 

4. O relatório dispensa a proteção de 50 metros no entorno de veredas o que significa não somente a consolidação de ocupações feitas nessas áreas como inclusive novos desmatamentos, pois deixa de existir uma faixa de proteção das veredas, sendo somente as veredas consideradas área de preservação. É como se o relator definisse somente a nascente como área de preservação e dispensasse a faixa no entorno dessa nascente como de preservação permanente. Para o bioma Cerrado, o mais ameaçado hoje pela expansão indiscriminada da agricultura, essa exclusão dos 50 metros de faixa de proteção significa a condenação das veredas. 

5 . O relator suprime APP de reservatório natural com menos de 1 ha (art. 4º, §4º). Retoma a redação da Câmara o que significa acabar com APP nesses reservatórios (altamente vulneráveis) sob o argumento de que muitos deixam de existir em função das longas estiagens. 

6. O deputado Paulo Piau aumenta as possibilidades legais de novos desmatamentos em APP ao excluir (§6º do artigo 4º) a restrição para novos desmatamentos nos casos de aquicultura em imóveis com até 15 Módulos fiscais (na Amazônia, propriedades com até 1500ha). 

7. O relatório amplia de forma indiscriminada a possibilidade de ocupação nos manguezais ao manter a separação dos Apicuns e Salgados e delegar o poder de ampliar as áreas de uso aos Zoneamentos, sem qualquer restrição e manter somente os §§ 5º e 6º do art. 12. 

8. No art. 16, o relatório retoma o § 3º do texto da Câmara para deixar claro que no cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual de Reserva Legal todas as modalidades de cumprimento são válidas: além da regeneração e da recomposição, também a compensação que poderá ser feita em outros estados

9. O relatório exclui critérios técnicos para manejo florestal facilitando a “supressão de árvores” em propriedades rurais. Isso significa estímulo à degradação florestal em RL (com a alteração do artigo 23). 

10. Ao suprimir o parágrafo 10 do artigo 42 o relator propõe que incentivos inclusive econômicos inclusive com recursos públicos possam ser investidos para proprietário que desmatou ilegalmente depois de julho de 2008. Instituição da corrupção ambiental. O crime passa a compensar de fato com estimulo de governo. 

11. Ao suprimir o artigo 43 do Senado o relatório elimina um dos poucos dispositivos que vincula recursos à recomposição de APPs. 

12. O deputado Piau ressuscita a emenda 164 (de sua autoria na Câmara) que delega aos Estados a definição do que será consolidado em APP (supressão dos §§ 4º, 5º e 7º do art. 62) remetendo aos PRAs a regularização das propriedades e posses rurais. É o dispositivo da institucionalização da anistia. Sequer os 15 metros mínimos do Senado foram acatados pelo relator. 

13. O relatório de Piau exclui também os §§ 13 e 14 do artigo 62 que tratam da possibilidade de exigências superiores às constantes na Lei, nas bacias hidrográficas consideradas críticas e das propriedades localizadas em área alcançada pela criação de unidade de conservação de proteção integral. A supressão do §13 condena mais de 70% das bacias hidrográficas da Mata Atlântica que já tem mais de 85% de sua vegetação nativa desmatada. 

14. No art. 64, o relator Piau consolida pecuária improdutiva em encostas, bordas de chapadas, topos de morros e áreas em altitude acima de 1800 metros. 

15. Suprime o art. 78, que veda o acesso ao crédito rural aos proprietários de imóveis rurais não inscritos no CAR após 5 anos da publicação da Lei. Com isso elimina um dos dispositivos de pressão para o cadastramento ambiental rural dos móveis e para que os estados de fato regulamentem e implementem os cadastros em, no máximo, cinco anos. Retira a eficácia do CAR. 

*Tasso Azevedo é engenheiro florestal, consultor em sustentabilidade, ex-diretor geral do Serviço Florestal Brasileiro e conselheiro do Planeta Sustentável. André Lima, advogado, consultor jurídico da SOS Mata Atlântica e consultor de Políticas Públicas do IPAM.


Publicado no portal Planeta Sustentável em 24/04/2012

quarta-feira, 18 de abril de 2012

Andando para trás


Um dos vídeos de esportes mais assistidos no youtube mostra o Waka, ritual da equipe de rúgbi da Nova Zelândia repetido antes de todas as partidas dos All Blacks, como são chamados, uma referência ao uniforme inteiramente preto. O ritual oriundo da cultura Maori é a marca de esporte mais popular do país (os All Blacks são para o rúgbi o que seleção brasileira é para o futebol). Os maoris são a população indígena original da Nova Zelândia, e apenas nas últimas décadas foram se afirmando como a identidade cultural do país. Nos anos 90, um longo processo de negociação nacional levou à consolidação de um pacto pela conservação e uso sustentável das áreas florestais e reconhecimento dos direitos indígenas. Hoje, na Nova Zelândia, quase 1/3 do país está em áreas protegidas, os maoris têm seus territórios e o direito de uso reconhecido, e toda produção florestal se dá em bases sustentáveis. Os recursos naturais e a cultura maori são a expressão da modernidade e a identidade nacional na NZ.

No Brasil, após décadas de construção, passo a passo, do processo de reconhecimento, proteção e conservação dos nossos ativos naturais e culturais, estamos enfrentando, em plena preparação da Rio+20, a ameaça de desmonte deste legado.

No final de março, a Comissão de Constituição e Justiça na Câmara considerou constitucional a PEC 215/2000, proposta de emenda constitucional que propõe passar do Executivo para o Congresso Nacional a prerrogativa de criação das Unidades de Conservação e a demarcação e homologação de terras indígenas e territórios quilombolas para o Congresso Nacional.

Não se trata apenas de uma simples alteração de responsabilidade, significa praticamente inviabilizar a criação de áreas federais protegidas no Brasil. A experiência em outros países mostra que onde a atribuição passou do Executivo para o Legislativo praticamente se estancou o processo de criação de áreas protegidas, ou, no mínimo, aumentou significativamente o custo de sua criação e implementação, como no caso dos EUA, onde essa transição aconteceu há quase 100 anos. Praticamente, todo o sistema de unidades de conservação dos EUA foi constituído até o início do século XX, quando o poder de criação das Reservas Florestais, que era do presidente, passou para o Congresso. Desde então, o que foi criado foi na forma de Monumento Natural, a única categoria em que ainda permanece no âmbito do Executivo o poder de decisão de fazê-lo.

Tanto a criação de unidades de conservação como a reconhecimento de territórios indígenas são processos que são precedidos de extensos estudos que identificam tecnicamente as razões para sua criação e localização. Não faz sentido que seja submetido a um processo de votação que será eminentemente político. O clima e a pressão existente no Congresso é exatamente no sentido contrário, reduzir as Unidades de Conservação e Terras Indígenas.

Proposta da PEC 215 é de 2000 e nunca prosperou. Mas, agora, a aliança dos grupos mais arcaicos do setor rural brasileiro aliados e boa parte da base do governo no Congresso encontraram terreno fértil para prosperar a partir do rasgo aberto na legislação socioambiental com o processo de alteração do Código Florestal.

Entre 2011 e 2012, uma série de iniciativas no âmbito do Congresso está desfigurando o arcabouço de proteção ambiental no Brasil. A alteração do Código Florestal, a aprovação de lei complementar que reduz as atribuições do Ibama e do Conselho Nacional de Meio Ambiente, os projetos de lei para reduzir unidades de conservação estão prestes a ser coroados com a PEC 215/2000.

O Brasil começa a caminhar para trás. E a passos largos. Dois de nossos ativos mais emblemáticos, que são a riqueza dos nossos ambientes naturais e a cultura dos nossos povos originários, estão sendo ameaçados e fragilizados no mesmo momento em que são cada vez mais valorizados em boa parte do mundo.

É preciso reverter o quadro em formação e dar sinais claros de que o Brasil deseja o encontro da sociedade brasileira com as dimensões mais concretas de nossa identidade nacional.


Artigo publicado no jornal O Globo em 18/04/2012