Um dos vídeos de esportes mais assistidos no youtube mostra o Waka, ritual da equipe de rúgbi da Nova Zelândia repetido antes de todas as partidas dos All Blacks, como são chamados, uma referência ao uniforme inteiramente preto. O ritual oriundo da cultura Maori é a marca de esporte mais popular do país (os All Blacks são para o rúgbi o que seleção brasileira é para o futebol). Os maoris são a população indígena original da Nova Zelândia, e apenas nas últimas décadas foram se afirmando como a identidade cultural do país. Nos anos 90, um longo processo de negociação nacional levou à consolidação de um pacto pela conservação e uso sustentável das áreas florestais e reconhecimento dos direitos indígenas. Hoje, na Nova Zelândia, quase 1/3 do país está em áreas protegidas, os maoris têm seus territórios e o direito de uso reconhecido, e toda produção florestal se dá em bases sustentáveis. Os recursos naturais e a cultura maori são a expressão da modernidade e a identidade nacional na NZ.
No Brasil, após décadas de construção, passo a passo, do processo de reconhecimento, proteção e conservação dos nossos ativos naturais e culturais, estamos enfrentando, em plena preparação da Rio+20, a ameaça de desmonte deste legado.
No final de março, a Comissão de Constituição e Justiça na Câmara considerou constitucional a PEC 215/2000, proposta de emenda constitucional que propõe passar do Executivo para o Congresso Nacional a prerrogativa de criação das Unidades de Conservação e a demarcação e homologação de terras indígenas e territórios quilombolas para o Congresso Nacional.
Não se trata apenas de uma simples alteração de responsabilidade, significa praticamente inviabilizar a criação de áreas federais protegidas no Brasil. A experiência em outros países mostra que onde a atribuição passou do Executivo para o Legislativo praticamente se estancou o processo de criação de áreas protegidas, ou, no mínimo, aumentou significativamente o custo de sua criação e implementação, como no caso dos EUA, onde essa transição aconteceu há quase 100 anos. Praticamente, todo o sistema de unidades de conservação dos EUA foi constituído até o início do século XX, quando o poder de criação das Reservas Florestais, que era do presidente, passou para o Congresso. Desde então, o que foi criado foi na forma de Monumento Natural, a única categoria em que ainda permanece no âmbito do Executivo o poder de decisão de fazê-lo.
Tanto a criação de unidades de conservação como a reconhecimento de territórios indígenas são processos que são precedidos de extensos estudos que identificam tecnicamente as razões para sua criação e localização. Não faz sentido que seja submetido a um processo de votação que será eminentemente político. O clima e a pressão existente no Congresso é exatamente no sentido contrário, reduzir as Unidades de Conservação e Terras Indígenas.
Proposta da PEC 215 é de 2000 e nunca prosperou. Mas, agora, a aliança dos grupos mais arcaicos do setor rural brasileiro aliados e boa parte da base do governo no Congresso encontraram terreno fértil para prosperar a partir do rasgo aberto na legislação socioambiental com o processo de alteração do Código Florestal.
Entre 2011 e 2012, uma série de iniciativas no âmbito do Congresso está desfigurando o arcabouço de proteção ambiental no Brasil. A alteração do Código Florestal, a aprovação de lei complementar que reduz as atribuições do Ibama e do Conselho Nacional de Meio Ambiente, os projetos de lei para reduzir unidades de conservação estão prestes a ser coroados com a PEC 215/2000.
O Brasil começa a caminhar para trás. E a passos largos. Dois de nossos ativos mais emblemáticos, que são a riqueza dos nossos ambientes naturais e a cultura dos nossos povos originários, estão sendo ameaçados e fragilizados no mesmo momento em que são cada vez mais valorizados em boa parte do mundo.
É preciso reverter o quadro em formação e dar sinais claros de que o Brasil deseja o encontro da sociedade brasileira com as dimensões mais concretas de nossa identidade nacional.
Artigo publicado no jornal O Globo em 18/04/2012