Na segunda metade do século XIX, houve grande batalha legislativa no Brasil que culminou com a abolição tardia da escravatura. Fomos o último país das Américas a fazê-lo. Passaram-se inacreditáveis 38 anos entre a proibição do tráfico de escravos e a Lei Áurea. Todo este período para convencer o setor rural da época a dar liberdade a seres humanos que eles consideravam sua propriedade, assim como a terra ou os implementos agrícolas.
O debate se estendia acaloradamente com acusações de que abolição da escravatura era uma interferência para atender aos interesses escusos internacionais e veementes defesas do direito inalienável de propriedade. Eram comuns artigos na imprensa ponderando os argumentos de cada lado com supostos dilemas como a necessidade de garantir a produção de alimentos e a viabilidade econômica da produção agrícola, ao mesmo tempo em que era necessário proporcionar algum direito de liberdade aos escravos.
Nesse debate, muitos produtores rurais que já haviam abolido seus escravos e organizavam sua produção por meios mais modernos ou simplesmente nutriam aproximação ética com a causa abolicionista raramente se manifestavam se acomodando com a situação com uma certa indiferença sobre o resultado do debate. Estariam bem resolvidos qualquer que fosse o resultado.
Algumas décadas depois, o Brasil se tornaria um dos primeiros a ratificar a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Liberdade, hoje, é direito humano fundamental. Toda forma de escravidão ou trabalho análogo a escravidão é abominável, inegociável, e é inadmissível qualquer relativização em torno desse tema.
Em muitos aspectos, o embate em torno do Código Florestal e de obras de grande impacto socioambiental traz consigo os mesmos elementos do debate sobre a abolição da escravidão.
Depois de anos se recusando a cumprir o que determina o Código Florestal desde 1965 e suas respectivas alterações até 2001, uma parcela retrógrada do setor rural, extremamente articulada, vem travando uma intricada batalha no Congresso para desfigurar as medidas de proteção ambiental asseguradas pelo código. Em sua defesa, mal disfarçam a total inconsistência técnica - flagrantemente apontada pela SBPC - e se concentram em argumentos como a necessidade de expandir a proteção de alimentos, a inviabilidade econômica da recuperação ambiental, a opressão das multas e - como sempre - os interesses escusos internacionais.
Mas o que mais surpreende é a forma como este debate vem sendo tratado pela imprensa e com importantes formadores de opinião do meio rural. Em geral, existe uma tentativa de relativizar a questão ambiental, propondo buscar-se um entendimento que permita ponderar os interesses econômicos e a viabilidade financeira dos empreendimentos como a proteção ambiental.
Mas como se pode relativizar a sustentabilidade ambiental se ela é que dá sustentação à vida? Como relativizar a ilegitimidade da contínua ocupação de áreas de encosta que, fragilizadas, ceifam vidas a cada evento extremo como os que acometeram a Serra Fluminense recentemente?
Da mesma forma, como não se pode relativizar direitos humanos ou a liberdade de imprensa, não podemos relativizar a proteção ambiental, especialmente quando os principais impactados, as gerações futuras, sequer têm como se expressar.
Nesse debate, é preciso sim escolher um lado, inequívoco. E este lado é óbvio para os que acreditam nos valores democráticos, nos valores humanos e no significado da responsabilidade intergeracional.
Esta é uma lição que José Bonifácio deixou. Patriarca da independência, José Bonifácio também foi um ferrenho defensor da abolição e da democracia e o primeiro formulador de políticas ambientais no Brasil, sendo reconhecido como patrono da Engenharia Florestal. Nunca deixou de escrever e defender em alto e bom som suas teses, escolhendo sempre um lado, sem relativizar: o lado da liberdade, da independência, da democracia e da proteção ambiental.
Publicado em O Globo em 26/10/2011