quarta-feira, 28 de outubro de 2015

Quando o futuro é presente

Dia desses passou um carroceiro em minha rua com uma máquina de escrever a caminho da reciclagem como plástico e ferro. Por R$ 20, arrematei a preciosidade e dei-a de presente para minha filha Clara, então com 4 anos. Ela fuçou daqui e dali, testou, observou e concluiu: “Muito legal pai, este computador já vem com impressora!”

Toda vez que a Clara vê uma tela, seu impulso é tocar e interagir. Muitas vezes, lendo um livro para ela dormir, Clara pede coisas do tipo:
— Pai, pega lá o iPad e me mostra uma foto da Malala quando era pequena?

Para ela, as telas sensitivas, a busca na internet ou o computador como interface para produção de conteúdo são quase nativos na sua concepção de mundo.

O que serão os conceitos nativos da geração dos filhos da Clara? Penso nisso enquanto observo a instalação do sistema de painéis fotovoltaicos em casa, sob o olhar curiosos dos passantes. Em pouco mais de um dia, a equipe de quatro pessoas liderada por uma jovem engenheira elétrica instalam um sistema que proverá por 25 anos toda a energia elétrica que consumo em casa e no escritório.

Algumas coisas são mais fáceis de imaginar. Em um par de décadas, a autoprodução e o armazenamento de energia (solar, eólica, resíduos...) serão tão naturais como é hoje ter acesso à internet. Os veículos elétricos serão o padrão, motor a combustão será o modelo vintage, reciclagem, reuso e ressignificado farão parte de nosso padrão de comportamento e economia circular será intrínseco no nosso dia a dia. Também interagiremos com objetos e equipamentos como se estivéssemos conversando com o vizinho e a produção industrial será muito mais customizada e distribuída a partir da massificação da impressão 3D, aumentando exponencialmente nossa eficiência.

Outras transformações são mais desejos que caminhos óbvios. Nossa conexão facilitada nos tornará colaboradores nativos. Nossa alimentação será mais saudável e retomaremos o contato com a natureza como valor fundamental. Teremos acesso à educação de qualidade em qualquer língua através de plataformas universais de aprendizagem.

Essas transformações do nosso modo nativo são essenciais para vencermos o desafio dos objetivos do desenvolvimento sustentável, limitar o aquecimento global e as mudanças climáticas e a garantir a proteção dos recursos naturais essenciais à nossa vida.

Enquanto finalizo a coluna, Clara chega da escola no momento em que a engenheira testa o sistema solar recém-instalado e dá seu veredicto:


— Genial, papai! Igual ao carregador de celular do parque, né?

Publicado em  O Globo, em 28.10.2015

quarta-feira, 21 de outubro de 2015

Um Grid Global




Em qualquer momento do dia, bate Sol na metade do planeta. Um terço de terra firme é formada por desertos, quase sempre em áreas de alta insolação. Com uma pequena fração desse território – não mais de 0,5% - dá para gerar, de forma contínua, eletricidade suficiente para atender toda a demanda atual e a projetada para o planeta em2050, considerando inclusive a eletrificação de quase todo sistema de transporte e a produção industrial. 

O problema fundamental para tornar viável esse potencial, é suprir a intermitência diária da energia solar na ausência do Sol. Para tanto, é preciso uma combinação deduas revoluções: no armazenamento e na transmissão de energia a longas distâncias. 

Quando ainda é noite na América já é dia na África e Ásia e vice-versa. Uma região do planeta poderia gerar a energia necessária em outras regiões e a transmitir entre os continentes da mesma forma como fazemos hoje com voz e dados por meio dos cabos submarinos. O problema é que sistemas de transmissão de energia tendem a perder muito em eficiência à medida que transportam mais energia entre maiores distâncias, devido ao aquecimento e consequente aumento da resistência. As perdas alcançam cerca de 3,5% a cada mil quilômetros. 

A mais longa e uma das mais eficientes linhas de alta tensão no mundo é a que liga as usinas do Rio Madeira ao Sudeste do Brasil, com 2,4 mil quilômetros por onde transitam 3,1 GW de energia por hora. Uma perda de 5% no trajeto representa 200 MW - oque dá para abastecer uma cidade de 1,5 milhão de habitantes.

O desafio da transmissão intercontinental envolve cem vezes mais energia e o triplo da distância. A solução para isso está nos sistemas de transmissão com base em cabos de supercondutividade que, por operarem em baixas temperaturas, conseguem transmitir muito mais energia por polegada e com perdas menores de 1% a cada cinco mil quilômetros.

O primeiro cabo operacional desse gênero foi instalado em 2014 na cidade de Essen, na Alemanha, ligando uma geradora ao centro de distribuição da cidade. Os cabos supercondutores possuem um engenhoso mecanismo de esfriamento com nitrogênio líquido que circula por dentro deles, como em um sistema de artérias e veias. O interior do cabo por onde transita a energia fica a menos de 200 o C, fato que reduz as perdas em mais de 90%, mesmo considerando a energia gasta para manter o nitrogênio líquido. Os cabos supercondutores representarão para a energia o que a fibra ótica representou para a transmissão de dados.

Os primeiros cabos submarinos de fibra ótica foram instalados em 1988, ligando os Estados Unidos à Inglaterra. Em menos de três décadas, todos os continentes já estão interligados por mais de 280 cabos submarinos com quase um milhão de quilômetros de extensão. Assim, antes de 2050, o planeta terá um grid global interconectando todos os continentes e a eletricidade fluirá pela rede da mesma forma como hoje acontece com dados e voz.

O sistema de armazenamento (tema para ser analisado mais detidamente em futuras colunas) ajudará a dar fluidez à energia em rede. Assim como acontece com dados, poderemos armazená-la em formas fixas ou móveis (exemplo: kits de baterias, em casa ou no carro), de maior ou menor capacidade, e em periféricos ou em nuvem.  

O Grid Global trará consigo oportunidades de geração de energia onde ela for mais limpa e barata, ao mesmo tempo que possibilitará a rápida expansão das fontes renováveis e uma espécie de phase out (uma eliminação progressiva) da produção e do consumo de combustíveis fósseis.

Figura:Diagrama de autoria de S. Chatzivasileiadis / ETH Zurich

Artigo Publicado na coluna Bússola da revista Época Negócios, Nov 2015