quarta-feira, 31 de maio de 2017

Legalidade Criativa





Escreve-me um amigo italiano: “Vocês, brasileiros, são realmente inventivos. Depois da contabilidade criativa, agora inventaram a legalidade criativa”.

No primeiro mandato da presidente Dilma, para esconder a penúria fiscal do país, a equipe econômica transformava déficits públicos em superávits através de malabarismos contábeis dignos de pastelão, que ajudaram a empurrar o Brasil para a maior recessão de sua história.

Agora, o governo trata de criar a legalidade criativa. Funciona assim: se tem uma coisa ilegal acontecendo, o jeito mais rápido de acabar com a ilegalidade é legalizar a coisa. A proposta de anistiar o caixa 2 é o exemplo mais claro em tempos de Lava-Jato.

Mas é contra a proteção do patrimônio natural brasileiro que este fenômeno tem sido mais escancarado e corrói a reputação brasileira.

O Brasil assumiu o compromisso de acabar com o desmatamento ilegal e a grilagem de terras públicas e promover o fortalecimento do sistema de áreas protegidas. Tá lá na nossa lista de compromissos no Acordo de Paris “Zerar o desmatamento ilegal na Amazônia” — o que, digamos, já é muito pouco, pois se é ilegal deveria ser eliminado já, não em 2030, e deveria valer para todos os biomas.

Já em 2012, o governo, em articulação com o Congresso Nacional, aprovou uma revisão do Código Florestal que reduziu a obrigação de recuperar 40 milhões de hectares (dez vezes o Estado do Rio de Janeiro) ocupados ilegalmente em Reserva Legal e Preservação Permanente. Assim, quase todos os desmatamentos ilegais anteriores a 2008 foram anistiados.

Agora, o Congresso, estimulado pelo próprio governo Temer, perdeu completamente o pudor. No espaço de poucas semanas, aprovou MPs que reduzem as áreas protegidas e permitem legalizar a grilagem e o desmatamento de terras públicas e, nas próximas semanas, promete aprovar uma lei que praticamente acaba com o instrumento do licenciamento ambiental. Se estivesse em vigor na época do acidente de Mariana, não haveria qualquer crime do maior acidente ambiental da história no país.

Desde a Constituição de 1988, o Brasil vinha construindo um dos mais sólidos arcabouços legais de proteção ambiental e das populações tradicionais. Na esteira deste compromisso, conseguiu reduzir drasticamente o desmatamento e as emissões de gases de efeito estufa entre 2005 e 2012, atraindo a atenção, o respeito e os recursos da comunidade internacional, isso sem qualquer prejuízo à produção agropecuária ou à economia do pais, que teve um dos seus períodos de maior crescimento.

Esta legalidade criativa, além de atentar contra o patrimônio natural de todos os brasileiros, coloca em risco a credibilidade e a competitividade do país. Depois de anos como campeão da redução das emissões de gases de efeito estufa, passamos nos últimos dois anos a campeão do aumento das emissões — e com a economia em frangalhos. Eles estão rifando o nosso presente e futuro. Assim não dá para levar o Brasil a sério.


Publicado em O Globo em 31.05.2017

quinta-feira, 11 de maio de 2017

Colaboração é o nome do jogo



A receita tradicional de produção ciência, produtos e serviços envolve uma ideia, um plano e definição de responsabilidades amarrada em contratos e acordos sobre o que esta sendo demandado e o que será entregue.  Uma montadora de automóveis desenha um veiculo, planeja sua montagem, contrata fornecedores de peças e componentes e trabalhadores para montar os veículos e outros para comercializá-los e assim por diante.

Esta receita vem sendo transformada radicalmente nas últimas duas décadas conforme mergulhamos no mundo da colaboração em massa como motor da inovação com ganhos de escala, rapidez e eficiência para atacar os mais complexos problemas.

A Wikipédia, criada em 2001, é o exemplo mais conhecido de produção colaborativa. A maior enciclopédia da história – um dos cinco sites mais acessados do planeta – foi e continua sendo construído e financiado integralmente por colaborações voluntárias de milhões de pessoas. A Wikipédia disseminou a tecnologia Wiki criada por Ward Cunninghan em 1995 para facilitar a troca de idéias entre programadores onde todos podem editar e não tem um controle central de conteúdo e edição. Hoje são milhares de sites que utilizam esta tecnologia em grupos fechados ou abertos.

Mas a colaboração em massa já saiu do mundo virtual para os campos de pesquisa, produção e serviços. O Hyperloop, conceito de transporte de altíssima velocidade (acima de 1000 km/h) em tubos de semi-vácuo que promete ser o transporte do futuro para longa distância começou com um projeto conceitual publicado em 2012 pela Tesla, sob liderança de Elon Musk, com a explicita intensão de que fosse construído de forma aberta. Desde então dois consórcios independentes iniciaram processos para desenvolver o Hyperloop, um deles envolve milhares de colaboradores em rede. Universidades em todo o mundo participam de competições para desenvolver os ‘Pod’ que andarão pelo tubo ou outras partes do sistema e em 2020 já teremos as primeiras linhas do transporte futurista operacionais.

Em 2015 no Brasil foi criado o MapBiomas, uma iniciativa com quinze instituições para produzir em três anos os mapas anuais de cobertura e uso do solo de todo o país para as ultimas três décadas. Usando o método tradicional levariam décadas para produzir os mapas, mas a combinação do uso do conhecimento de diversos especialistas em sensoriamento remoto, uso da terra e ciência da computação com processamento distribuído e processo colaborativo de criação de algoritmos e classificadores automáticos permitiu gerar em 18 meses os mapas para 17 anos (2000-2016) além de um conjunto amplo de ferramentas para multiplicar a iniciativa para outros países.

A possiblidade de armazenar e explorar uma quantidade gigante de dados (BigData), a computação em nuvem, as ferramentas de comunicação rápida e global e a vasta disponibilidade de ferramentas abertas (open source) cria o caldo de cultura que permite potencializar a colaboração de pessoas com as mais diversas habilidades. Mas o que parece realmente ser o motor de ignição destas iniciativas de sucesso é definição de um problema comum a ser resolvido (ou objetivo a ser alcançado) que seja mobilizador e inspirador ao mesmo tempo que pareça impossível de ser resolvido por uma iniciativa individual. São tantos os desafios desta natureza que a colaboração veio mesmo para ficar.

Publicado em Época Negócios, edição de Maio/2017