quarta-feira, 24 de junho de 2020

Esqueceram o elefante na sala



O Ministério da Agricultura lançou recentemente o seu Plano Estratégico 2020-2027,  com tudo a que um plano tem direito: missão, visão, objetivos estratégicos, programas e metas. Coisa rara no atual governo.


Não tive dúvidas e mergulhei nas 40 páginas do documento. Decepcionante. Missão e visão vagos e bem tradicionais. Quase nada de inovação ou inspiração.


A análise de contexto desconsidera ou apenas tangencia os principais desafios e questões colocadas à  mesa da produção agropecuária no mundo,  como o enfrentamento das mudanças climáticas que afetam diretamente a produção agropecuária, a conservação do solo e da água, a substituição da proteína animal por vegetal e a sintetização dos alimentos (new food).


Mas o mais incrível é a total ausência de qualquer referência ao elefante na sala da ministra da Agricultura: o desmatamento. Aliás, o elefante também já chegou aos gabinetes do Ministério da Economia e do Itamaraty.


O desmatamento, especialmente na Amazônia, é o centro da preocupação global com o Brasil,  como mostra a carta dos 29 dos maiores fundos globais ameaçando retirar investimentos do país caso não consigam garantias de que o problema não contaminará seus negócios.


Mais de 95% das áreas desmatadas no Brasil são  ocupados por atividades agropecuárias (e mais de 99% do desmatamento têm fortes indícios de ilegalidade). A agropecuária é,  assim,  o maior responsável ou beneficiário direto do desmatamento.


Mas, como diz a ministra Tereza Cristina e todos os seus antecessores desde Roberto Rodrigues em 2003, o Brasil não precisa derrubar mais um hectare de floresta ou vegetação nativa para continuar sendo a potência agropecuária e se tornar o maior produtor de alimentos do planeta. O problema é que a retórica não encontra eco na prática e, como se vê agora, nem mesmo no planejamento.


O plano do Ministério da Agricultura ignora a necessidade de desvincular o agronegócio brasileiro do desmatamento pela concreta redução das taxas de derrubada da mata e a implementação de um programa robusto de rastreabilidade da produção. Em vez disso,  promete um programa de comunicação para conter as notícias negativas sobre o Brasil.


No plano, uma das poucas referencias à  biodiversidade é como  uma  "oportunidade para agregação de valor, tais como explorar melhor o conceito de 'brasilidade' e fortalecer a marca do país”.  Para a Amazônia, uma única referência, no Programa de Fortalecimento da Agricultura Familiar na Amazônia Legal, com a meta pífia de atender 13 mil produtores familiares até 2023 e só.


É hora de tirar o elefante da sala, não com plano de comunicação, mas com o compromisso sério de zerar o desmatamento na expansão da agropecuária brasileira, massificar agricultura de baixo carbono e tornar rastreável toda a produção nacional.


Com estes três pilares resolvidos,  a agropecuária brasileira será certamente o maior cartão de visitas do Brasil para sua inserção global.


Publicado em O Globo em 25.06.2020

terça-feira, 2 de junho de 2020

No desmatamento a legalidade é exceção



Acaba de ser lançado o primeiro Relatório Anual de Desmatamento do Brasil cobrindo todo o país. Ele indica que só em 2019 foram detectados e confirmados 56,8 mil alertas de desmatamento,  que devastaram 12.187 quadrados  de vegetação nativa no país, sendo 63% da Amazônia, 33,5% no Cerrado e 3,3% na Mata Atlântica, Caatinga, Pantanal e Pampa. O estudo constatou que mais de 99% dos desmatamentos não foram autorizados ou se sobrepõem com áreas protegidas; portanto, têm fortes indícios de serem ilegais.

O relatório é produto do MapBiomas,  um consórcio mais de 20 instituições entre universidades, ONGs e empresas de tecnologia que monitoram as mudanças no território brasileiro através do uso de técnicas de aprendizado de máquina e inteligência artificial aplicadas ao sensoriamento remoto por satélite.  Partindo dos alertas de desmatamento gerados pelo INPE e outras instituições,  os pesquisadores avaliaram cada um dos 168 mil alertas emitidos pelos diferentes sistemas de detecção de desmatamento e consolidaram, validaram e refinaram os alertas com imagens de satélites diárias e de alta resolução. Assim, conseguiram determinar exatamente quando e onde aconteceu cada desmatamento no país.

Cruzando estes alertas com as bases de dados oficiais do Cadastro Ambiental Rural e de autorizações de supressão da vegetação, descobriu-se que em mais de 75% da área desmatada é possível  identificar um CPF ou CNPJ de um responsável pela área (que se autodeclarou!) e,  portanto,  responsabilizá-los pelo desmatamento ilegal remotamente, independentemente de fiscalização no campo. Dizer que é preciso  dar título em terra pública para poder responsabilizar é não só ilógico,  como imoral,  ao premiar invasores de terras publicas que cometeram um ato ilegal.

Por outro lado, um ponto positivo: menos de 1% dos mais de 5,6 milhões de imóveis rurais cadastrados no CAR teve desmatamento em 2019.

É a primeira vez no mundo que se consegue mostrar de forma tão detalhada, clara e objetiva o perfil do desmatamento de um país. Para cada alerta que cruza um imóvel rural foi preparado um laudo indicando sobreposição com áreas protegidas ou de uso restrito, a existência de autorização para o desmatamento ou de embargo por irregularidades anteriores.

É hora de dar um basta na ilegalidade. Aqui as tarefas de forma bem clara: órgão ambientais devem notificar, autuar, multar e embargar todos os imóveis com desmatamento ilegal constantes no CAR; bancos,  bloquear crédito para toda propriedade com desmatamento ilegal; empresas do agronegócio devem oferecer controle de origem de todos os seus produtos para garantir  que não se relacionam com produtos do desmatamento; e Ibama  e demais órgãos de controle devem focar a fiscalização nas áreas protegidas e onde tenham maior chance de pegar os infratores em flagrante.

Os dados e os instrumentos estão na mesa e disponíveis gratuitamente para que governos, Ministério Público e empresas atuem de forma decisiva para estrangular o desmatamento ilegal que mina nossos recursos naturais e destrói a reputação do país.

Saiba mais sobre MapBiomas Alerta

Publicado em O Globo em 30.05.2020