quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

Agiota Regular



Dona Lair tem 69 anos. Nasceu em Joanópolis, no interior de São Paulo, e começou a trabalhar de faxineira aos 12 anos. Aos 15, o pai tentou estuprar a ela e à irmã. Quando teve coragem de contar à mãe, esta ateou fogo no corpo e se suicidou. Fugiu com três irmãs para São Paulo e continuou trabalhando de faxineira até quando o corpo aguentou e enquanto a aceitavam. Teve três filhos, hoje na casa dos 30 anos. Analfabeta, sabe apenas assinar o nome. Nunca teve carteira assinada. Ao se ver sem faxina para fazer, ouviu de um alguém no centro espírita que frequentava que limpar a calçada poderia ser seu destino. Há dez anos, Dona Lair limpa o mato de calçadas.

Aos 67, um morador ajudou Dona Lair a conseguir se aposentar por idade, e ela, finalmente, após uma vida inteira, passou a ter uma renda mensal segura e uma conta em banco. 

Encontrei Dona Lair chorando na semana passada. Parei para conversar — “Doutor no ano passado, quando meu filho perdeu o emprego, e minha filha foi presa com droga, eu precisei de dinheiro e fiz um empréstimo da Crefisa. Agora, toda vez que eu recebo a aposentadoria, eu vou no banco, e quase não tem dinheiro, eles pegam tudo”.

Em junho de 2015, Dona Lair assinou um contrato de empréstimo de R$ 850 para ser pago com débito automático em 12 parcelas de R$ 351, uma taxa de juros de 22% ao mês, ou 1.050% ao ano! Com os débitos automáticos, sua conta ficou negativa várias vezes e foi coberta com crédito rotativo do banco. Quando olhei o extrato bancário de Dona Lair, foi difícil de acreditar. Por causa de um empréstimo de R$ 850, ela havia pago em 16 meses quase R$ 7 mil entre parcelas, juros, mora. Só para a Crefisa foram R$ 3.850, e ainda devia R$ 890 para quitar a divida. Isso mesmo, ela tomou empréstimo de R$ 850, pagou R$ 3.850 e devia R$ 890!

Fui à Crefisa com ela, mostrei que o contrato era nulo, uma vez que Dona Lair não tinha condições de entender o que havia assinado, e os juros eram abusivos. Confrontados, acionaram o departamento jurídico, que aceitou dar o contrato como quitado, sem mais pagamento algum, mas mediante o compromisso de não acioná-los na Justiça. Nas duas horas de negociação e espera para encerrar o contrato, observei o entra e sai da loja. Os atendentes não dão qualquer informação sobre o quanto já foi pago do contrato, pedem que a pessoa leve um extrato bancário para eles “ajudarem a conferir”. Na verdade, o que buscam é saber o saldo em conta da pessoa para emitir um boleto “com desconto” para pagamento imediato. É pura agiotagem e abuso da fragilidade dos que buscam o crédito já em desespero.

O acesso aos serviços financeiros é essencial para a sustentabilidade em qualquer sistema econômico. Mas se o sistema é regulado (ou desregulado) sem a proteção dos mais desfavorecidos, ele vira uma chaga que corrói em vez de construir, que drena em vez de prover. Tem certas coisas que não dá para deixar para o “mercado resolver”. É preciso definir um limite para taxas de juros no Brasil — válido para contratos existentes e futuros para estancar esta sangria concentradora de renda em curso no Brasil.

Não precisa nem ser taxa de países desenvolvidos (5%-10% ao ano), mas nos níveis de outros países latino-americanos (até 50% ao ano) já seria um enorme avanço. Taí uma agenda positiva para o presidente Temer ajudar a resolver.

Coluna de O Globo, 28.12.2016

segunda-feira, 12 de dezembro de 2016

Vida aos 200 anos


A expectativa de vida dos humanos deu um salto monumental nos últimos 150 anos passando de 30 para os atuais 68 anos. É um feito extraordinário quando se considera a evolução anterior. Desde que o Homo Sapiens passou a dominar a paisagem a cerca de 10 mil anos até meados do século do século XIX, a media de vida dos humanos variou entre 20 e 30 anos.

O processo pelo qual demos este salto está associado- a fatores bem conhecidos como significante melhoria na nutrição (tanto em quantidade como diversidade), avanços na prevenção e tratamento de doenças e infecções com a descoberta da vacina e a penicilina, a redução drástica das guerras e a evolução da educação e infraestrutura que permitiram a redução de riscos associados a acidentes, imprevistos e desastres naturais.

Hoje as principais causas de morte não acidental em países desenvolvidos estão associadas às doenças típicas do envelhecimento como câncer, Alzheimer e outros,  enquanto nos países menos desenvolvidos, ainda estão associadas a doenças infeciosas ou subnutrição.

Na última década avanço do conhecimento da biologia associado à capacidade de processamento da informação (inteligência artificial) apontam para um futuro onde as principais causas de morte não acidentais poderão ser evitadas ou consertadas.

Em 2012 foi descrito o CRISPR-CS9 uma tecnologia desenvolvida a partir da observação da habilidade das bactérias de resistir ao ataque de vírus, que permite a edição de genes de forma tão simples, precisa e especifica como um editor de texto. Isso permite uma infinidade de aplicações como corrigir defeitos no genoma que afetam o metabolismo que causam patologias ou alterar células cancerígenas para que parem de se multiplicar ou ainda gerar mosquitos que não transmitam dengue, malária ou zika.

Mais recentemente em 2015 uma técnica chamada GeneDrive (algo como gene dirigido) permitiu ir além do CRISPR, permitindo que as alterações do gene se autoperpetuassem. Algo como você corrigir um erro no editor de texto e este erro ser corrigido automaticamente em qualquer documento que você abrisse posteriormente.

A evolução destas tecnologias e outras tecnologias emergente nos próximos 15 anos vai transformar radicalmente nossa perspectiva de saúde e nossa expectativa de vida. Terapias não invasivas estenderão a expectativa de vida em décadas para pessoas com 50 anos, tempo suficiente para que outras terapias possam corrigir novos defeitos e estender a vida por mais 30-50 anos e assim por diante. Ou seja, quem nasceu hoje viverá num mundo em que a idade terá pouca relação com a probabilidade de morrer no próximo ano.

Quando os primeiros humanos completarem o seu 200o aniversário, já terão nascido os primeiros humanos que viverão mil anos.


Esta perspectiva tem várias consequências, uma das mais relevantes é a mudança de perspectivas sobre o cuidado com o planeta em que vivemos. A busca da sustentabilidade deixa de ser um ato de generosidade com as gerações futuras, mas uma necessidade para a geração atual. 

Publicado em Época Negócios, Edição de nov/2016