quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Do básico ao desruptivo

 


Setembro foi o mês mais quente no planeta desde que os registros começaram em escala global,  em 1979.  A temperatura média global já subiu 1oC acima da média do século passado,  e o número de eventos climáticos extremos  triplicou nas últimas quatro décadas.


Para  que o aquecimento global não ultrapasse os 1,5oC,  os cientistas do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC) estimam que o mundo precisa emitir no máximo 770 GtCO2e (bilhões de toneladas de CO2 equivalente) de gases de efeito estufa na atmosfera (GEE) até o fim do século. As emissões anuais se aproximaram em 2019 das 60 GtCO2e e,  neste ritmo,  teremos consumido todo o nosso orçamento de emissões antes de 2040.

Esta situação não nos deixa muitas saídas. Temos que reduzir drasticamente as emissões e aumentar muito as remoções para obter as chamadas emissões negativas na segunda metade do século. Ou seja, precisamos retirar mais carbono da atmosfera do que emitimos.


Para uma parte importante do problema,  como a geração de energia por fontes renováveis, o fim do desmatamento e a ampliação do reflorestamento e da restauração de solos são hoje menos uma dificuldade tecnológica e mais político-econômica. Mas existem fontes de emissão que precisam de muita inovação disruptiva,  como a produção de aço e cimento.


Veja o caso do cimento: para transformar o calcário (CaCO3) em cal (CaO) — matéria-prima do cimento —, é preciso retirar uma molécula de carbono e outras duas de oxigênio. Isso é feito aquecendo o calcário,  e o resultado é a emissão de uma molécula de CO2 para cada uma de cal produzida. Os esforços para reduzir emissões se concentravam até recentemente na diminuição da quantidade de cal necessária para produzir o cimento ou o concreto, no uso de energia de fontes renováveis no processo e na tentativa de substituir a cal por outro material.


Mas recentemente a Solidia, uma startup americana, desenvolveu uma tecnologia para curar o cimento com CO2,  em vez de água. O resultado dos testes já realizados em escala mostra que o cimento cura 90% mais rápido e se torna mais resistente e durável, capturando o equivalente 70% do carbono emitido na produção do cimento. Com alguns avanços adicionais relacionados à formulação química do CO2 capturado para usar na cura do cimento (exemplo,  ácido cítrico),  será possível tornar as emissões do procedimento negativas.


Nesta próxima década precisamos reverter a curva de emissões e temos que  fazer de tudo, do básico ao mais disruptivo, para prosperar num mundo mais fresco e saudável. Não há tempo a perder.


Publicado em O Globo - 28.10.2020