Na região da Amazônia que virou fonte de carbono e pôs a ciência em pânico, rodamos pelas estradas em busca de algum mato para contar a história
por: Claudio Ângelo e Tasso Azevedo
O rio Tapajós definitivamente não convidava a um mergulho naquela manhã de sábado. Famoso no passado por suas águas azuis, o afluente do Amazonas se apresentava num verde leitoso esquisito na altura da cidade de Itaituba, oeste do Pará. Ninguém sabe ainda o que causou a mudança da cor do rio neste ano: as apostas vão da proliferação de algas microscópicas à lama dos garimpos que arrasam seus afluentes a montante da “cidade-pepita”, a capital paraense do ouro. Na balsa que cruza para o distrito de Miritituba, na margem direita, mais um elemento que definitivamente não parece estar ajudando a limpar o rio apareceu.
“Olhem só, de vez em quando aqui na balsa passam umas fagulhas”, observou nosso motorista, Carlos Alberto Noronha, o Carlão, enquanto flocos semelhantes a uma nevada leve caíam sobre o para-brisa do carro. “Os portos graneleiros aqui do lado estão despejando soja nas barcaças, e o vento levanta a poeira da soja.” Transtorno para os moradores, que não conseguem pendurar roupas para secar fora de suas casas na época da safra, e mais uma carga de sujeira jogada no Tapajós.
Miritituba se tornou na última década um símbolo das transformações aceleradas que o oeste paraense vem sofrendo. O distrito hoje conta com meia dúzia de estações de transbordo de cargas (ETCs), terminais onde centenas de caminhões descarregam diuturnamente soja e milho colhidos em Mato Grosso (e hoje também no Pará), que serão enviados em barcaças até os portos de Santarém, Barcarena e Santana (esta última no Amapá), depois transferidos a navios e exportados, em sua maior parte para a China.
Com a pavimentação da rodovia BR-163, a Cuiabá-Santarém, anunciada em 2002 e concluída apenas em 2020, o agronegócio de Mato Grosso ganhou uma rota de escoamento diretamente para o chamado Arco Norte do país, mais próximo dos mercados consumidores e a uma distância menor dos centros de produção do que os portos do sul, como Paranaguá. A rodovia passou a enfrentar congestionamentos de carretas na época da safra, e postos de combustível com capacidade para 500 caminhões cada um foram construídos no chamado Km 30, a intersecção entre a 163 e a Transamazônica. Caminhoneiros chegam a esperar dias nos pátios desses megapostos para descarregar em Miritituba.
Mas a principal atingida pela rodovia e a consequente expansão do agronegócio pelo oeste paraense foi a floresta amazônica. O surto de grilagem que se seguiu ao anúncio do asfaltamento fez o desmatamento na região explodir. No começo do século, a devastação ao longo da 163 fez um “dente” no chamado Arco do Desmatamento, a meia-lua sinistra da destruição que avançava Amazônia adentro desde o Maranhão, passando por Tocantins, Mato Grosso, sul do Pará, Rondônia e Acre. Foi também um dos fatores responsáveis pelo desmatamento brutal de quase 28 mil quilômetros quadrados visto em 2004.
O governo Lula tentou conter o surto de desmatamento interditando a área em torno da BR para criar um plano de ordenamento territorial, o “BR-163 Sustentável”. Este incluía a criação de um mosaico de unidades de conservação no entorno da rodovia, como a Floresta Nacional e o Parque Nacional do Jamanxim, a Floresta Nacional de Trairão e o Parque Nacional do Rio Novo. A ideia era que as novas áreas protegidas, mais as já existentes e as terras indígenas, formassem uma “muralha” que protegesse a floresta. Também foi planejada a criação de um distrito florestal sustentável na BR-163, no qual empresas de exploração madeireira pudessem disputar concessões de Florestas Nacionais para fazer manejo sustentável – trazendo dinheiro, empregos e concorrendo com a madeira ilegal.
Embora as teses estivessem corretas e as áreas protegidas de fato sejam um entrave à devastação, faltou Estado nos anos seguintes para implementar o plano. Hoje a região sudoeste do Pará – municípios como Trairão, Novo Progresso e o distrito de Castelo dos Sonhos, em Altamira – ainda está entre os pontos mais quentes de desmatamento. Ali aconteceram, por exemplo, as duas maiores operações de combate à destruição da última década, a Castanheira (2015) e a Rios Voadores (2016), que levaram à prisão os maiores desmatadores do país, Ezequiel Castanha e Antônio “Jotinha” Junqueira Vilela Filho.
As unidades de conservação criadas em 2006 vêm sendo invadidas e desmatadas. O maior exemplo é a Floresta Nacional do Jamanxim, acessível por uma avenida de Novo Progresso. É a área protegida mais invadida e destruída da Amazônia. E pelo menos dois terços das invasões ocorreram após a criação da Flona.
O governo Bolsonaro virou de vez o clima na região ao desmontar os órgãos de controle ambiental e, mais do que isso, empoderar os criminosos com seus discursos. Se grilar, desmatar e garimpar eram vistos antes como um fato da vida e depois como atividades sujeitas a punição, hoje elas são motivos de orgulho – e quem diz o contrário é um inimigo a ser erradicado. Os municípios que mais desmataram a Amazônia elegeram Jair em primeiro turno e lhe permanecem fiéis. Em Novo Progresso é difícil encontrar um comércio, um carro ou uma porteira de fazenda que não sejam adornados com uma bandeira do Brasil, o símbolo capturado pelo regime. Foi em Novo Progresso que fazendeiros se uniram em agosto de 2019 para fazer o infame “Dia do Fogo” e “mostrar serviço ao presidente”.
O MapBiomas Alerta detectou neste ano na região de Castelo dos Sonhos a maior derrubada contínua de floresta na Amazônia: 6.500 hectares de terras públicas destruídos entre fevereiro de 2020 e agosto de 2021. Tentamos chegar de carro até o local, mas fomos impedidos. A estrada que dava acesso à área desmatada começava numa fazenda às margens da BR-163, mas fomos informados de que só seria possível entrar com autorização do dono do imóvel – que, segundo informou a mulher que nos vedou a entrada, estava em Novo Progresso, sem previsão de retorno.
Em 2021 a região voltou a causar pânico entre os observadores da Amazônia. Um estudo liderado pela pesquisadora do Inpe Luciana Gatti e publicado na revista científica Nature mostrava que duas grandes áreas da Amazônia, a de Santarém e a de Alta Floresta, que inclui o trecho paraense da 163, já emitem mais gás carbônico do que absorvem. Isso se deve aos efeitos combinados das queimadas e da mudança do clima. Na região de Alta Floresta as temperaturas médias subiram 2,5oC desde 1979. Isso implica no aumento da mortalidade de árvores, que pode significar o colapso da floresta e um agravamento ainda maior do aquecimento da Terra.
No começo de setembro, nós descemos a BR-163 de carro desde Santarém até Castelo dos Sonhos, retornando pela Transamazônica até Altamira. Estávamos em busca de floresta, o que, à beira da estrada, hoje é artigo raro. A partir de hoje, o Instagram do OC publica uma série de vídeos sobre a viagem. Em todo o trajeto de 850 km entre Santarém e Castelo dos Sonhos, o único trecho hoje cercado de floresta de ambos os lados é a breve travessia do Parque Nacional do Jamanxim.
Onde falta mata sobra soja. Vimos grandes áreas de antigas pastagens sendo convertidas para agricultura. E vimos desmatamentos recentes sendo queimados para a apropriação ilegal e a pecuária. Se essas áreas novas de gado serão convertidas para soja – ou se existe desmatamento novo para soja – ainda é uma incógnita; em tese, a moratória em vigor desde 2006 veda o cultivo da oleaginosa em áreas recentemente desmatadas. Mas a pressão, seja ela direta ou indireta, da agricultura sobre as florestas remanescentes do Pará ficou clara em nosso trajeto.
Isso para não falar no garimpo. O preço do ouro disparou no mundo com a pandemia e cidades como Itaituba, Novo Progresso estão em plena febre do metal. Em Itaituba não se encontra vaga em hotel. Em Novo Progresso uma pizza chega a custar R$ 130. Vimos igarapés completamente alterados por lama de garimpo e uma balsa de extração ilegal no Parque do Jamanxim, a menos de 1 km da BR-163. Em lojas da cidade há verdadeiros estacionamentos de pás carregadeiras (PCs), máquinas de centenas de milhares de reais utilizadas para escavar os rios em busca do metal. “O ouro está com um preço tão alto que o Ibama queima uma e o garimpeiro pede outra”, contou-nos um local.
A mineração está arrasando os rios da região e colocando pressão sobre terras indígenas. O caso mais emblemático é o dos munduruku, da região de Itaituba, assediados e divididos pelos garimpeiros apoiados pelo governo Bolsonaro. Mas a extração ilegal de ouro também é acelerada na Terra Indígena Baú, dos kayapó. Na terra vizinha, a Mekrãgnoti, os indígenas realizam eles mesmos o monitoramento das fronteiras para evitar a entrada de garimpeiros e outros criminosos – com recursos da compensação da BR-163, cortados pela Funai em 2019.
À exceção do território dos kayapó, o único lugar onde entramos em florestas inteiras foi, por incrível que pareça, uma madeireira. Na Floresta Nacional de Altamira, a cerca de 80 km de Moraes de Almeida, distrito de Itaituba, funcionam duas concessões do Serviço Florestal Brasileiro para empresas que fazem corte seletivo em bases sustentáveis (dividindo a área em talhões e deixando a floresta se regenerar após a exploração). Na Flona, o desmatamento vai até a divisa da área de exploração que visitamos, da empresa RRX Florestal. Dentro da unidade de exploração a floresta segue de pé, vigiada pelos madeireiros.
Diante da ausência do Estado, ou de sua presença estimulando o crime e atrapalhando a fiscalização, são povos indígenas, ambientalistas, funcionários públicos entrincheirados no Ibama e no ICMBio e uns poucos empresários que cuidam, do jeito que podem, de manter vivos os últimos grandes blocos de floresta daquela parte do bioma. É do sucesso desses atores que depende o futuro dessa região, um dos principais fronts da batalha pela salvação do clima da Terra.
Veja os vídeos no Instagram: @observatoriodoclima