sexta-feira, 18 de outubro de 2013

O último pedaço de bolo

Como dividir os últimos pedaços de bolo quando tem gente que já comeu várias fatias, outros que comeram só uma e ainda tem gente que nem chegou à festa? Este é mais ou menos o dilema do debate sobre limites de emissões de gases de efeito estufa (GEE) para evitar alterações climáticas graves para sociedade global.
balanço energético da Terra tende a um equilíbrio no qual a quantidade de energia que chega do sol (cerca de 340 Watts/m2) equivale à quantidade de energia que retorna ao espaço.  A interação desta energia com a superfície e o efeito de retenção de calor pelos gases de efeito estufa permitem que uma determinada quantidade de energia permaneça circulando na atmosfera e também manter a temperatura média do planeta em torno de 14-15oC. Sem esses gases, a temperatura média da terra seria de 18oC negativos (-18ºC).
É como uma caixa d´água com entrada de água na parte de cima. Se a saída de água estiver localizada no fundo, a água não será armazenada, mas se a saída da água estiver nos níveis superiores da caixa, ela encherá e será possível manter um determinado estoque.
Quando a concentração dos gases de efeito estufa aumenta na atmosfera, altera o balanço de energia que é refletido e, portanto, aumenta a quantidade de energia em circulação até que se estabeleça um novo equilíbrio. Esta perturbação do balanço de energia é chamada de forçamento radiativo (FR) e é medida em watts/m2. Quando o FR é positivo causa aquecimento da atmosfera, quando o FR é negativo causa esfriamento. Diferentes gases e materiais lançados na atmosfera têm efeito positivo (CO2, CH4 e N2O, entre outros) ou negativo (alguns aerossóis) no forçamento radiativo.
5º relatório do IPCC mostra que o aumento dos GEE na atmosfera, desde 1750, que ocorreu majoritariamente devido as emissões antrópicas – especialmente a queima de combustíveis fósseis – levou a um forçamento radiativo de 2,16 W/m2 e isso foi suficiente para levar ao aumento de +1oC  na temperatura média do planeta (+0,6 de 1880 até 2005).
Para estudar os possíveis caminhos das mudanças climáticas, o IPCC organizou estudos de quatro cenários de forçamento radiativo em 2100: 2,6 / 4,5 / 6,0 e 8,5 W/m2. Daí o nome dos cenários RCP2.6, RCP4.5 e assim por diante.  A partir destes cenários foi possível estimar os impactos no clima como aumento de temperatura, aumento do nível dos oceanos (que ao reter mais calor se expandem), derretimento de geleiras entre outros.
Conhecendo a trajetória e a relação entre a concentração de GEE na atmosfera e o forçamento radiativo, o IPCC foi capaz de estimar a quantidade máxima de emissões possíveis para que tenhamos chance de limitar o aumento da temperatura média do planeta.
Assim, o IPCC aponta que – para termos a chance de manter 66% de aumento médio da temperatura em 2oC em 2100 (2081-2100), comparado com 1880 (1861-1880), como definido nos objetivos da Acordo de Copenhague, o máximo de carbono a ser emitido na atmosfera no período é 1 mil GtC (bilhões de toneladas de carbono).  Isso porque o efeito é acumulativo, pois o carbono permanece por séculos na atmosfera.
tabela-tasso
Então este é o nosso orçamento de carbono para o período de 200 anos. Acontece que, se descontarmos o efeito da emissão de outros gases (200 Gt em carbono equivalente) e o que já foi emitido até 2011 (531 GtC), sobram apenas 271 GtC para emitirmos até o final do século. Isso dá uma média de 3 GtC ou 11 GtCO2 por ano, muito abaixo das emissões atuais de CO2 na casa de 35 Gt/ano (e crescendo).
Não sem motivo, este foi uma dos pontos mais duros do debate final sobre o Resumo para Tomadores de Decisão do primeiro volume do V Relatório do IPCC (AR5). Ao se tornar explícita a existência deste orçamento, cria-se uma pressão para que as partes da convenção (ou seja, os países membros) estabeleçam mecanismo para alocar tal orçamento de carbono no processo de construção do novo acordo internacional do clima, que poderá ser aprovado em 2015, definindo o caminho pós-2020.
Mas qual critério utilizar para dividir a porção do bolo que sobrou? Como incorporar as responsabilidades históricas do que já foi emitido? Como considerar as gerações futuras ou mais de 1 bilhão de pessoas que, hoje, emitem quase nada? Existem diversas possibilidades e todas guardam enormes desafios para que possamos atingir, ao mesmo, tempo eficácia e justiça.
No ritmo atual de crescimento de emissões, este orçamento de carbono será estourado muito antes da metade do século. Só reverteremos este quadro se conseguirmos alterar esta trajetória nos próximos anos. Criar as condições para esta reversão é o desafio central de todos envolvidos na negociação do novo acordo do clima, e ele certamente passa por enfrentar o dilema do último pedaço do bolo.